Filho da classe média-alta do Rio, boêmio e bem relacionado, João Guilherme Estrella, 56 anos, se transformou no maior distribuidor de cocaína da elite carioca nos anos 1990. Rei do tráfico na Zona Sul, ganhou também a Europa, para onde levou quilos de pó escondidos em forros de casacos e ternos. Ganhou muito dinheiro e, na mesma velocidade, gastou tudo, como viu-se no livro e no filme que sua vida inspirou – Meu Nome Não É Johnny.
Passou dois anos na cadeia, vivenciando de perto o risco da morte. E se regenerou. Ganhou a liberdade, abandonou vícios e não voltou ao crime. Hoje é pai, músico, produtor cultural e palestrante. A prevenção ao consumo de narcóticos norteia o seu discurso. Embora aconselhe as pessoas a dizerem "não", defende iniciativas como a regulamentação da venda e do consumo da maconha.
Ele entende que a política de guerra às drogas fracassou e, hoje, contribui com a escola de formação de criminosos ao lançar em cadeias superlotadas pequenos traficantes, que acabam convivendo com quadrilheiros de alta periculosidade.
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Estrella acredita que a legalização da maconha contribuiria com a redução do contingente carcerário, elevaria a arrecadação de impostos e respeitaria liberdades individuais, mas dificilmente reduziria a violência. O que fariam os donos de bocas de fumo se o Estado e o mercado tradicional tomassem o seu lugar? Partiriam para outros crimes, como assaltos e sequestros, ele acredita. Seria tarde demais para assumir um emprego "normal".
Na entrevista a seguir, o carioca comenta suas experiências lisérgicas, o emperrado debate sobre política de drogas, o alcance destrutivo do álcool e a violência gerada pelo tráfico.
Como é discutir política de drogas em meio a uma onda conservadora como a que vivenciamos atualmente no país?
O Brasil sempre foi conservador. Tudo bem que, às vezes, quando você libera tudo, você tem descompassos, mas a descriminalização da maconha deve estar sendo falada desde o fim da II Guerra Mundial. E não sai. Fica aquela coisa amarrada. O país é extremamente burocrático, corrompido e atrasado. Escolhe qualquer tema que necessite de votação no Congresso: você vai bater de frente com a burocracia e esse domínio esquisito que a classe política detém.
A legalização da maconha poderia contribuir para a diminuição da violência?Quando a gente tenta um tipo de coisa durante décadas e décadas, e quando essa coisa não funciona, você tem de experimentar outro formato. O combate às drogas, no formato que conhecemos, deve ter um século, já. Esse tipo de atraso coloca nossa democracia muito em xeque. Obviamente que liberar as drogas de uma vez só não seria estrategicamente interessante. A maconha não anda há décadas no Congresso e na opinião popular, então imagina se você botar cocaína, LSD e ecstasy em um mesmo projeto: provavelmente levaria cem anos para ser aprovado. A liberação da maconha poderia gerar uma receita muito grande e também colaborar medicinalmente com muitas possibilidades. Conheci uma mãe cuja filha tinha 50 convulsões por dia e, depois de usar canadibiol, passou a ter apenas uma. Mas eu não acredito que a liberação da maconha poderia diminuir a violência. A liberação não vai tirar as armas das ruas. Há o tráfico de armas e o de cocaína. A cocaína é uma coisa que acelera, vende mais e dá mais dinheiro do que a maconha. A disputa pelos pontos de tráfico de cocaína é brutal. É guerra. Com a maconha liberada, vamos ter uma grande receita que pode ser revertida para o tratamento de pessoas, campanhas de informação, inclusive sobre o álcool. Muda a abordagem das drogas. No formato atual de combate, acabou que um bando enorme de moleques que foram vender uma maconhazinha ficou preso no meio de vários assassinos. Esse formato só criou monstros. Uma coisa boa com a liberação da maconha seria a diminuição do contingente carcerário. Isso, sim, seria uma grande diferença.
No caso da Califórnia, houve liberação da maconha para uso recreativo. O debate também envolve interesses empresariais, já que uma medida dessas poderia representar um novo mercado.
Com certeza. E isso gera impostos. Os impostos em cima do álcool são altíssimos. Se você liberar a cocaína, quem vai vendê-la não vai mais ser uma comunidade cuja economia gira em torno do dinheiro do tráfico – já que o Estado não está lá. Vai ser uma empresa como a Bayer. Só que agora é tarde para as pessoas que vivem do tráfico ficarem mocinhos e trabalhar como varredores, por exemplo. Essas pessoas vão partir para outros crimes, sequestro, assalto a banco... Tem muita coisa para pensar.
Na Holanda, onde você já esteve, tentou-se restringir o consumo de maconha somente para os holandeses, o que não está dando muito certo. O que você acha dessa experiência?
A Holanda já tinha um problema antes da maconha: os ingleses, que moram ali ao lado, vão aos milhares passar o fim de semana em Amsterdã porque prostituição e álcool são liberados. Na Holanda, você vara a noite, é 24 horas. Ao mesmo tempo, você não vê um cara acender um baseado enorme ao lado de uma senhora de idade em um ponto de ônibus. As pessoas têm os seus espaços e eles são respeitados. Aqui talvez tudo isso ficasse confuso, porque somos um país muito maior e, além disso, uma nação jovem. Ainda temos muito o que aprender, principalmente em relação à educação.
E o caso uruguaio?
Eles podem ter pensado: "Vamos fazer disso aqui a Holanda da América Latina, vamos investir forte no turismo". Acho interessante, porque é um país menor, um bom lugar para fazer esse teste aqui no nosso continente. Só que os EUA ficam furiosos. Eles têm projetos de bilhões de dólares de combate às drogas, não querem ameaças a esse controle.
Você foi jovem nos anos 1980, no Rio, em uma época de explosão das drogas e também do vírus da aids. Como avalia a geração atual, que é mergulhada em tecnologia e parece menos ligada em experiências transcendentais, na comparação com as anteriores?
Avalio que o consumo das drogas, hoje, é muito maior. São justamente as drogas que dão essa ideia de transcendência, as sintéticas, que estão sendo consumidas em um volume absurdo. A variedade dessas drogas é gigantesca, até me assusto com isso. Talvez o que não se tenha tanto hoje em dia é o interesse em parar e transcender, aproveitar a experiência com mais observação, ir para uma fazenda, um retiro. Também é fato que hoje consome-se muita maconha no mundo. É uma planta que poderia ser liberada, até porque você não tem índices de acidentes graves de carro, de assassinatos e de violência ligados à maconha. Mas o álcool é a pior droga. É o maior causador de catástrofes, de trânsito a brigas de bar.
Você tem um filho de oito anos. Como tem abordado com ele a questão das drogas e da tua experiência de vida?
Temos um diálogo aberto. Vou de acordo com a demanda dele. Converso, explico, sem ficar escondendo nada. Em relação às drogas, essa pergunta ainda não chegou. Ele já demonstrou curiosidade pelo livro (Meu Nome Não É Johnny), mas num universo ainda sem o contexto exato. Dei um livro a ele. Daqui a pouco ele vai ler e perguntar mais. E eu vou ter de responder tudo... Estou trabalhando o amor por ele e a franqueza desde que nasceu. Quero que ele tenha liberdade para conversar sobre o assunto se um dia acontecer de ele fumar ou de oferecerem a ele. Cedo ou tarde acontece, a questão é como você vai lidar com isso. Se vai experimentar ou se vai estar preparado para dizer não. É o que tento fazer com meu filho: que ele se sinta firme para a vida toda, e isso num contexto muito mais amplo do que as drogas.
O desafio do indivíduo que decide experimentar é evitar cair no vício e no abuso?
Eu não acho que essa preocupação, no início, passe na cabeça da grande maioria. Se isso vem, é bem depois, quando já se tornou um problema. O que eu falo nas minhas palestras é que, se você tivesse certeza absoluta de que conseguiria tomar um ácido como experiência e depois deixar para lá, eu aconselharia o consumo como experiência. Assim como Freud fez. Quando a pessoa não tem certeza sobre a sua propensão a se tornar dependente químico, o meu conselho é de que o melhor é dizer não. Isso vale também para o álcool. Na minha opinião, não é a maconha a porta de entrada para as drogas mais fortes. É o álcool. A partir do momento em que o cara bebe e cheira uma carreira, ele vai achar o máximo. E vai se ferrar.
No Brasil, quando se fala em traficante, a imagem é de um sujeito bárbaro. Você foi considerado o maior distribuidor de cocaína da zona sul do Rio nos anos 1990, mas não andava armado, não tinha quadrilha, gostava de festa, música e de cheirar junto com os clientes...
No asfalto você não precisa ficar defendendo quartéis, bocas e tal. Talvez eu até corresse mais risco de ser preso, mas, como não tinha nenhum planejamento para fazer o que acabei fazendo, tudo se deu sem confronto. Tem a polícia que te pega e quer dinheiro, mas não havia a necessidade de armas. Eu ia a festas e bares nos quais todo mundo ia. Eu curtia.
E como foi a decisão de publicar o livro e depois autorizar a produção do filme Meu Nome Não É Johnny?
Eu já pensava em fazer. Comecei a escrever alguma coisa quando estava preso. Depois, consegui fazer entrar na prisão um violão e comecei a compor. O Guilherme (Fiuza, autor do livro), quando dá depoimentos, conta que ele perguntou e eu topei na hora. Na verdade, ele pediu que eu pensasse mais um tempo e me procurou um mês depois. E eu não tinha mudado de ideia.
Você cumpriu dois anos de prisão. Houve críticas por parte de quem entendia que a pena deveria ser dilatada pelo fato de você ter sido pego com seis quilos de cocaína destinados à Europa. Você se recuperou e, em liberdade, não reincidiu. Como foi o processo de regeneração?
Fui buscar algo de que gostasse de fazer. Eu pensava em gravar meu primeiro disco, o que veio a acontecer bem depois. Gravar um disco não é tão simples como eu ficava imaginando quando estava preso, com toda aquela ansiedade de quem está trancado. Fui buscando trabalhar com coisas de que gosto, com produção, execução de shows, coisas desse tipo. Procurei um amigo que me conseguiu um negócio bem simples, que era cuidar de happy hour em shopping. Trabalhei com isso por muito tempo. Hoje em dia, considero-me um bom profissional da área. Já produzi coisas bem grandes, ainda gosto de fazer isso. E também faço shows e palestras.
O livro se dedica em boa parte a avaliar sua relação familiar. Um dos pontos abordados foi a convivência com seu pai, executivo de sucesso e sujeito afetuoso, mas que parecia não impor nenhum limite. De alguma forma, essa relação pode ter influenciado seu destino no tráfico?
Isso é uma coisa pessoal. Não tem nada a ver com a educação que eu recebi. Eu não chamaria os meus pais de liberais. Tinha diálogo, carinho, conversa. Meu pai era um cara sério, honesto, dedicado ao trabalho. O meu caso (com o tráfico) foi que eu não disse "não" quando deveria ter dito. Eu já tinha 28 anos, fui topando e aceitando, até que virou uma coisa grande, um negócio. Foi um erro.
Quando a Polícia Federal prendeu você, havia amigos contigo que também foram pegos. Como foi seu rompante em juízo, quando resolveu assumir a culpa sozinho e livrar o lado dos antigos companheiros? Foi combinado com a defesa?
Sim. Meu advogado me deu a opção de tentar sair como consumidor. Até porque tinha cocaína no meu sapato, eu ia para a rua com aquilo no pé, levava um pouco para mim. O policial fotografou isso. Mas não aceitei. Ficou combinado que eu iria assumir, até porque ninguém assumiria. Aquilo não era uma quadrilha que trabalhava junta: foram pessoas que se juntaram naquele momento. O rompante se deu porque a juíza foi chamando os outros, e ninguém sabia dizer de quem eram os seis quilos de cocaína. Aí eu interrompi e falei.
O que foi pior: a carceragem da Polícia Federal ou a prisão psiquiátrica?
A grande diferença é que na Federal havia um monte de regras e o Comando Vermelho. Era muita neurose, cobrança e vigilância. Enquanto no manicômio judiciário não tinha regra nenhuma, com um monte de maluco, você tinha de vigiar quem tomou o remédio ou não. Tinha homicidas que surtavam e perdiam a cabeça. A luta pela sobrevivência em ambas era diferente, mas muito complicada.
Mas a sua vida esteve mais ameaçada na prisão psiquiátrica?
Sim. Foi 3 a 1 para o psiquiátrico (risos). Na Federal, tive um caso mais sério de risco de morte, mas só um. No psiquiátrico, foi mais complicado, apesar de ser mais livre, com mais espaço. É que a sanidade era um problema complicado.
Na prisão, você estabeleceu uma rotina de não cheirar mais e de fazer exercícios, leituras e trabalho na administração do manicômio. Em liberdade, alguma recaída na questão das drogas?
Cerveja, sim. Tomei algumas vezes, às vezes ainda tomo. Mas outras drogas, não. Sou o tipo de pessoa que esgota as coisas, vai ao limite, busca experiências fortes. E isso acaba servindo de lição. Não consigo entender uma pessoa que comete os mesmos crimes que a levaram a ficar presa por alguns anos. Nem outros tipos de crime. Qualquer coisa que faça voltar à cadeia. É um horror, o tempo não passa de jeito nenhum.
O Brasil vive o caos na segurança, com facções se matando nas ruas e nos presídios. Há uma disputa entre Comando Vermelho e PCC no país. O tráfico hoje seria a maior engrenagem da violência no Brasil?
Não. É a corrupção nas escalas mais altas do país. Esse é o ponto inicial de toda a encrenca. Onde está o dinheiro da educação? A educação é fundamental para as pessoas não pararem nesses lugares.
Você chegou a ser sequestrado por policiais, na época do tráfico, que queriam extorquir você em troca de liberdade. Essa corrupção, também abordada em filmes como Tropa de Elite, segue da mesma forma hoje? Por que chegou a tal ponto?
Acredito que segue. A gente fica sabendo da corrupção das bases, do soldado que está na rua. Mas a corrupção é de gabinete também. É uma pegada maior do que a gente pode imaginar, envolvendo juízes. Não é nenhuma novidade, já tivemos aí vários casos de juízes envolvidos na venda de sentença. A corrupção impede o país de crescer e impede que essas crianças que se tornam assassinos e bandidos tenham oportunidades para seguir outros caminhos que não o do crime.
Você pensa em entrar para a política?
Ainda não concretizei, não me filiei em lugar nenhum, mas já pensei. Gostaria de debater a liberação das drogas e o seu uso medicinal.
E qual seria o seu partido?
Não pensei, está difícil escolher, né (risos). Tem que ver se vão me aceitar também...