O Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo investiga a divulgação de vídeos com "jogos perigosos" para crianças e adolescentes nas redes sociais. Os canais estimulam automutilação e suicídio. Os promotores acionaram o Google, empresa responsável pelo YouTube, onde os vídeos estão hospedados. Donos desses canais chegam a lucrar até R$ 20 mil mensais com publicidade.
O assunto ganhou repercussão nos últimos dias com relatos de suicídios e automutilações pelo país supostamente ligados ao jogo virtual Baleia Azul, que incentivaria esse tipo de prática. Os casos mobilizaram escolas, famílias e a polícia, que investiga se o jogo existe e quem seriam os responsáveis por estimular as agressões.
No último mês, a Procuradoria Regional do Direito do Cidadão já conseguiu remover 11 vídeos que estimulam jovens a se ferirem ou se matarem, com base no critério de maior popularidade. Sobre o Baleia Azul, o MPF paulista informou que ainda não abriu investigação.
O objetivo do MPF agora é fazer com que o YouTube tenha maior controle sobre os conteúdos, além de estudar eventual responsabilização da empresa caso não remova os vídeos.
– Se a empresa propicia essas situações (divulgação dos vídeos), discutimos se pode ser considerada corresponsável por elas. Estamos recebendo cada vez mais casos deste tipo. É um problema que a tecnologia criou e ainda não se sabe como lidar – diz o procurador Pedro Antonio de Oliveira Machado.
A investigação sobre os canais que divulgam os desafios teve início neste ano. Isso ocorreu após uma entidade que denuncia estes vídeos, o Instituto Dimicuida, de Fortaleza, ter apontado ao MPF a existência de ao menos 19 mil vídeos com este tipo de conteúdo na internet.
Uma reunião entre os procuradores, o Google e a entidade deve acontecer ainda neste mês, com o propósito de buscar novos mecanismos para filtrar os vídeos. Uma das queixas a serem analisadas é a demora para que eles sejam removidos, mesmo depois de denúncias.
O Google disse que não comenta o caso específico do inquérito. Já ao MPF informou que o Youtube é uma plataforma de hospedagem e não faz controle prévio do conteúdo. Destacou ainda que, a cada segundo, cerca de uma hora de novos conteúdos é gerada e enviada. Segundo a empresa, o site é voltado a maiores de 18 anos ou usuários sob supervisão de adultos responsáveis. Ainda há, acrescenta, canais dentro do próprio site para denúncias.
O inquérito faz menção direta a pelo menos quatro canais no YouTube com desafios perigosos – todos com mais de 1 milhão de seguidores. Segundo o site Social Blade, de estatísticas sobre canais de vídeos, conteúdos acessados por esta quantidade de pessoas rendem até R$ 20 mil mensais. As publicações mostram desafios como o jogo do enforcamento, que pode levar ao suicídio, e congelamento com desodorante, que causa queimaduras no corpo.
Pai iniciou luta contra material impróprio
Há três anos, o empresário Demétrio Jereissati encontrou o filho Dimi, de 16 anos, sem vida. O adolescente tinha um cinto em volta do pescoço e foi vítima do jogo do enforcamento. Após a experiência trágica, Jereissati criou o Instituto Dimicuida, que denuncia vídeos desse tipo, além de fazer a prevenção.
– Ná época em que isto aconteceu, nós tivemos pouca ou nenhuma informação sobre o assunto – conta o empresário. – Então fomos tentar identificar a dimensão do problema com o que vinha sendo feito em outros países, tanto de prevenção quanto a criação de entidades como a nossa – explica.
A proposta do instituto é oferecer ajuda aos pais, monitorar as páginas, trabalhar com ações preventivas com educadores e também denunciar conteúdo impróprio sobre o tema.
– Houve um crescimento absurdo desses vídeos. Em 2010, eram só cerca de 500 (vídeos na internet que estimulam agressões e automutilação) – afirma.
Hoje, são aproximadamente 19 mil.
Jereissati buscou o Ministério Público Federal para tentar criar um filtro maior dos vídeos, além de um alarme que possa alertar as autoridades em caso de acesso aos jogos perigosos.
– Vivemos em uma realidade em que adultos não sabem lidar com o que os filhos acessam, por isso é importante que exista um controle maior.
Ele ressalta também a necessidade de rever a política de remuneração dos youtubers que lucram com a divulgação desses vídeos.
– Há interesses econômicos profundos. Quanto mais curtidas, mais visibilidade. Quanto mais visibilidade, mais dinheiro. Ninguém quer restringir a liberdade de expressão, mas há vidas sendo colocadas em risco – critica.
– O que temos visto é uma propagação avassaladora de vídeos e desafios, com youtubers fazendo grande promoção de práticas e alto risco para a saúde do corpo e emocional do jovem – afirma a psicóloga Fabiana Vasconcelos, também do Dimicuida.
O público é de crianças e adolescentes, entre 11 e 17 anos, sem distinção de gênero ou perfil.
– Queremos que este tipo de vídeo seja visto como criminoso. O Código Penal já fala em casos de indução à morte.
Fabiana cita um canal famoso, com mais de 6 milhões de inscritos, como um dos principais propagadores da prática:
– Se eu, jovem, vejo que um adolescente ganha mais dinheiro fazendo práticas de risco na internet, vou segui-lo e fazer igual.
Segundo a advogada Camilla Jimene, especialista em direito digital, a responsabilidade legal do Google é permitir a identificação dos usuários que produzem os conteúdos, mas não há obrigação de removê-los do ar sem antes receber denúncias.
– Quem vai responder pelo conteúdo do vídeo é o próprio usuário – explica a advogada do Opice Blum, Bruno Abrusio e Vainzof Advogados.
O Marco Civil da Internet é considerado dúbio em relação a quem pode fazer denúncia.
– O marco fala em remoção do conteúdo assim que a empresa for notificada. Mas alguns defendem que é preciso notificação judicial. Outros, que basta denúncia de usuário. O ideal é que a empresa desenvolva tecnologias para remover mais rapidamente conteúdos considerados impróprios, já que o volume de vídeos é muito grande.
A lei prevê que, com objetivo de impedir a censura, o provedor – o Google, por exemplo – só pode ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial, não tomar medidas para removê-lo, dentro dos limites técnicos e no prazo fixado.