Décadas atrás, o compositor João Roberto Kelly criou duas das marchinhas mais conhecidas pelos brasileiros: Maria Sapatão e Cabeleira do Zezé. Com presença quase obrigatória em qualquer baile de Carnaval do passado, ambas estão agora entre as composições que alguns blocos vetaram, por considerá-las preconceituosas.
No caso de Kelly, os descontentes veem homofobia nas letras. Maria Sapatão faz referência a uma mulher que "de dia é Maria e de noite é João". Cabeleira do Zezé fala de um rapaz de cabelos compridos "que parece que é transviado" e exige: "Corta o cabelo dele!". Atualmente com 78 anos, Kelly diz que os críticos só querem aparecer e nega que as letras sejam homofóbicas.
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Como o senhor recebeu a polêmica envolvendo as marchinhas consideradas preconceituosas?
Meu amigo, isso aí não tem nada a ver com Carnaval. Isso aí, evidentemente, é vontade de aparecer, mas de uma forma que, dentro do Carnaval, fica esdrúxula, fica muito sem graça. Querer falar de músicas consagradas durante tantos anos é inclusive falta de... Não sei. Não me agrada. Vai completamente contra o espírito do Carnaval.
Por quê?
O Carnaval é o grande faz de conta que existe. Quer dizer, a gente está brincando, está sonhando. O homem se veste de mulher, a mulher se veste de homem, você goza o barrigudo, você goza o careca, você brinca com todo mundo. Para tudo terminar na quarta-feira. Acho essa onda desnecessária e sem o menor sentido. Mas não pegou, não. Ninguém está ligando para isso. São dois ou três grupos. Tenho muito respeito por todos, mas acho que foi uma coisa inadequada.
Duas marchinhas compostas pelo senhor estão em evidência, Maria Sapatão e Cabeleira do Zezé. Qual é a origem dessas marchas?
Cabeleira do Zezé não tem nada a ver com sexo. É uma sátira à entrada dos Beatles no mundo musical. Quando os Beatles entraram, a moda jovem mudou. Os Beatles não influenciaram apenas a música, influenciaram também a maneira de vestir, de se comportar. Essa música foi feita justamente para satirizar essa onda. Porque uma vez fui a um barzinho no Leme e encontrei um garçom que parecia um beatle, com o cabelo grande, aquela jaqueta, aquela botinha. Achei um sujeito muito interessante, agradável até, e disse para ele: "Se fosse desenhista, ia fazer uma caricatura. Como não sou, vou fazer o que eu sei, uma marchinha". E aí nasceu a Cabeleira do Zezé.
E no caso de Maria Sapatão?
Isso foi uma encomenda do Chacrinha. O Chacrinha foi quem gravou essa musica e é meu parceiro nela. Foi uma encomenda dele. A ideia por trás é fazer uma brincadeira com essa liberação sexual que estava surgindo. Na segunda parte, eu até faço uma defesa do sapatão, porque eu digo: "O sapatão está na moda/O mundo aplaudiu/É um barato, é um sucesso/Dentro e fora do Brasil". Porque é um sucesso mesmo. Hoje, a gente não está mais ligando para quem é gay, quem não é.
Essa composição, o senhor vê como uma homenagem?
As pessoas normais veem.
E no caso da Cabeleira do Zezé não havia uma insinuação sobre a homossexualidade?
Não. "Transviado" não quer dizer veado, não. "Transviado" é o oposto, eram grupos conquistadores aqui de Copacabana. James Dean, no cinema. Juventude Transviada não quer dizer juventude veada. É completamente diferente. É falta de cultura.
Hoje, quando o senhor compõe, tem preocupação em evitar mal-entendidos?
Não. Quem é normal não pensa em mal-entendido nenhum. O artista é um criador, ele é livre. A maldade está na cabeça de quem pensa. Vou dizer uma coisa: isso é uma questão de mau gosto. Mas isso é uma meia-duziazinha. Implicaram também com fantasia de índio. Isso é bobagem, é tempo perdido. É falta do que fazer. Essa coisa do politicamente correto não tem a ver com o Carnaval, é outra coisa. Deixem o Zezé em paz.