No alto das dunas recortadas pela ressaca que, no final de outubro, engoliu parte da orla em Capão da Canoa, Bianca Ullmann, 10 anos, aposta corrida com o pai, Guilherme Ullmann, 30, e o concunhado Gustavo João Schorr, 34. A brincadeira consiste em chegar primeiro ao outro pico. É preciso descer de uma altura de cinco metros e subir outra vez. Ela vence, e os dois homens se engalfinham atrás. A competição é o que menos importa. Vez que outra, o trio termina rolando cômoro abaixo, pretexto para outra corrida, agora até o mar para tirar a areia dos corpos que, a essa altura, mais parecem croquetes sapecados pelo sol do meio-dia.
Na praia, as brincadeiras ao ar livre suplantam o mundo digital. Guilherme e Gustavo deixam o celular no apartamento. Bianca também deu um tempo no WhatsApp.
– Até estranhei – comenta Guilherme. – A gente só vê as crianças com celular na beira da praia.
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A pausa na tecnologia e o contato com a natureza abrem à família de Crissiumal, no noroeste do Estado, um portal para verões passados. Repetem o ritual dos pais. Eugênio, já falecido, pai do dentista Gustavo, chegava a ficar três meses na praia. Enio, pai do psicólogo Guilherme, era funcionário do Banrisul. A cada verão, era transferido para o Litoral para reforçar as equipes das agências. Guilherme ia junto.
– Foi amor à primeira vista – recorda.
A reminiscência não deixa de surpreender. O litoral gaúcho não é daqueles convites irresistíveis. Retilínea, sem os acidentes geográficos que conferem mar mais calmo e quente aos vizinhos catarinenses, a paisagem nem sempre agrada ao primeiro flerte. Há o Nordestão, a água cor de chocolate e aqueles incômodos e suspeitos riachinhos que cortam a beira-mar. Sem falar das mães d'água, do repuxo e das ruas alagadas dos centrinhos com a primeira chuva de janeiro. Basta os gaúchos iniciarem a migração em direção ao Litoral Norte para que se renove a antiga batalha na areia: há os veranistas como Guilherme e Gustavo, que, cheios de nostalgia, morrem de paixão pelas praias; e há aqueles que já trocaram o Estado pelas praias catarinenses – e, mais recentemente, uruguaias. Há ainda um terceiro grupo: aqueles que, na família ou entre amigos, denunciam as carências do nosso Litoral, mas se algum forasteiro o fizer, são capazes de comprar briga.
– É como aquela pessoa que pensa: "Eu sei que meu parceiro é feio, mas só eu posso dizer isso" – brinca o psicanalista Mário Corso, que, há três décadas veraneando no Uruguai, põe mais lenha na fogueira: – Os gaúchos se dividem entre os que querem ir para o Uruguai e os que vão para Santa Catarina. Os que não conseguem, ficam aqui.
O colunista Marcos Piangers conheceu a ira provocada por críticas ao Litoral. Em fevereiro do ano passado, o catarinense escreveu uma coluna em ZH narrando uma visita em família às praias gaúchas: "Me senti num ambiente tão inóspito, que não consigo entender como pode ser habitado", afirmou. Ele reclamou do vento, da música alta, do "aroma de peixe morto", da fumaça do queijo coalho, das ondas escuras e da espuma amarela.
– À época, pensei: "O litoral gaúcho parece a única coisa inferiorizada pelos próprios gaúchos no Rio Grande do Sul" – lembra Piangers. – É o melhor time, a melhor cultura. Pensei: "Pelo jeito posso falar do Litoral, porque todo mundo fala". O feedback foi: "Não!" Ficou claro que quem mora ou é do Litoral tem um carinho grande, nostálgico. Sofri bastante, me colocavam em grupo de WhatsApp, diziam que iam me matar. Até hoje fico psicologicamente abalado, nervoso. Mas entendi o ponto de vista.
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Antes de Piangers, Martha Medeiros mexeu no vespeiro ao questionar o glamour local (ou a falta de). "É lamentável que o nosso Estado, com tantas riquezas culturais e geográficas, tenha as praias mais ordinárias do país", escreveu em janeiro de 2006. Mentor de um autodenominado Movimento pela Glamourização do Litoral (MGL), naquele ano o agitador cultural Miltinho Talaveira também destratou o litoral gaúcho. Hoje é frequentador, com casa em Tramandaí.
– Ter glamour hoje é ser cafona. O glamour está em ser cool, ser discreto. Quando eu levantava essa bandeira, era porque sentia falta de infraestrutura. Parecia que, para ficar na praia, tinha de comer milho, tomar água de coco. Não vendiam sanduíche. Não podia levar isopor, que era farofeiro. Aí virou a fita. Hoje, tem guardanapo de pano em Atlântida – compara.
Logo após a polêmica de sua coluna, Piangers, a convite do colega Tulio Milman, foi viver outra experiência no Litoral:
– O Tulio me levou para ver o outro lado, desses caras que têm casa lá, valorizam a tranquilidade, aquela coisa do pai ter levado para lá, de ter ido pequeno para lá.
Em outras palavras, é o sentimento que Guilherme e Gustavo têm quando brincam nas dunas com Bianca ou quando fazem o churrasco do domingo, depois da caipirinha ou do milho à beira-mar. Seus pais, ao lado de milhares de outros gaúchos, foram desbravadores do litoral nos anos 1960 e 1970. Uma viagem entre a Capital e Capão chegava a durar seis horas – é assim ainda hoje, brincarão alguns, em véspera de Ano-Novo ou Carnaval, com as quatro pistas da freeway congestionadas.
Exageros à parte, antes da inauguração da primeira autopista do Brasil, no governo do presidente militar Emilio Garrastazu Médici, em 1973, o único acesso de carro ao mar do Litoral Norte era pela ERS-030, até hoje chamada de Estrada Velha. Eram perigosos quilômetros que serpenteavam morros, em faixa única, com poucos pontos de ultrapassagem, onde carros, ônibus e caminhões apinhavam a pista. Ao chegar às praias, a aventura não terminava. Havia trechos de areia em que o carro atolava e tinha de ser puxado por junta de bois. Até os anos 1980, a lentidão do transporte rodoviário e as comunicações incipientes – fila no orelhão no final de tarde para falar com quem ficou na cidade – potencializavam a sensação de isolamento para quem ia ao mar.
Mas bastava chegar para esquecer o martírio. As planondas; o pai gritando: "Não vai no buraco, olha a bandeira preta"; a bocha na cancha demarcada na areia; a foto nas carrocinhas puxadas por cabras ou bodes, visualizada dentro de um tubinho colorido; a tia que tomou um torrão ao dormir no sol com azeite besuntado no corpo como se fosse bronzeador; depois do almoço, o inconfundível matraquear do vendedor de casquinhas doces, tec-tec-tec.
Nos anos 1980, quando Gustavo viu o mar pela primeira vez, a brincadeira da moda era andar de bicicleta com amigos. A dupla fliperama e sorveteria era point para amizades e namoricos que, às vezes, não duravam mais do que um verão. Gustavo diz:
– As amizades se dissiparam. Agora, tem gente que nunca vi, mas ainda tem o aconchego da família. Tem aquela lembrança da família, carinho que ficou.
Guilherme e Gustavo obedecem a uma tradição, na opinião do psicólogo Robson de Freitas Pereira:
– Chegar ao Litoral era uma odisseia. Chegar a um hotel em Tramandaí era uma aventura, uma mudança para passar três meses de férias. Hoje, isso mudou, o ir e vir é muito maior. E a maioria das pessoas não passa mais três meses de férias na praia.
Para Pereira, a bocha, o homem do puxa-puxa, a sorveteria da esquina, a garoa do fim de tarde que convida a um carteado com chimarrão, a casa que enche de gente na sexta-feira são traços semelhantes a relatos de férias nas praias uruguaias e argentinas. O escritor Alan Pauls descreveu suas experiências litorâneas no livro A vida descalço (Cosac Naify, 2013), no qual reflete sobre a relação entre as pessoas, o mar e a areia, e recupera lembranças da infância e adolescência em Villa Gesell, no litoral da província de Buenos Aires: "Trata-se de um espaço utópico: milhares de corpos que convivem em estado quase primitivo, praticamente desnudos, submetidos a temperaturas altas e estímulos (...). Talvez seja um laboratório onde se aprende a moderar as paixões".
– Quando ele descreve o litoral argentino, parece que está descrevendo Capão. Essas narrativas trazem a ida para a praia, quando não era algo tão fácil como agora. Até por serem extensas, sem recortes geográficos, ventosas, nossas praias se aproximam mais das praias de inverno europeias, dos Hamptons, em Nova York, ou das uruguaias – avalia Pereira.
Verão ou inverno, a família Sonda, de Espumoso, viaja quatro horas para chegar ao Litoral. Já ficou em casa alugada ou com amigos em Tramandaí, Torres e Arroio do Sal. Mas nenhuma se compara a Capão.
– A infraestrutura daqui é melhor do que a de qualquer praia por aí. Nem Floripa tem. Em Canasvieiras, tu chegas e não tem nem lugar na praia – garante Gilmar Sonda, 56 anos, funcionário público.
Nem a água mais fria do que a do litoral catarinense os desanima.
– É gelada só quando entra. Depois fica boa – diz Maria Eduarda, 12 anos.
– Ela conheceu o mar ainda na minha barriga – conta a mãe, Rosane de Fátima Sonda, 51, gerente de uma cooperativa.
– A gente já foi a Itapema, Balneário da Penha... – entrega a garota.
– Qual é melhor? – questiono.
Silêncio. Um sorriso tímido.
– É aqui! – decide, por fim.
Pré-adolescentes como Maria Eduarda fazem um pacto informal com os pais, na opinião do psicanalista Robson de Freitas Pereira.
– Os adolescentes hoje em dia saem muito mais. Mas aqueles que ainda não têm condições, por serem menores de 15 anos, têm uma aliança com a turma de praia e com os pais para ficar no nosso litoral. Há essa força cultural e geracional de os pais ficarem com os filhos na praia – explica.
No inverno, a população do Litoral Norte é estimada em cerca de 260 mil habitantes. No verão, segundo o presidente da Associação dos Municípios do Litoral Norte, Silvio Fofonka, chega a 1,3 milhão. Um contingente nada desprezível do ponto de vista do consumo, mesmo em tempos de crise.
– Tivemos feriados e finais de semana com as praias lotadas, indicativo do que será o nosso verão. A crise nos beneficia, porque, com o dólar alto, o pessoal não viaja para fora. No verão passado, houve 50% a mais de faturamento nas receitas em relação à temporada anterior. Temos mar propício para banho, estradas ótimas, restaurantes diversificados para receber os turistas, hotéis abrindo mais cedo. Estamos de braços abertos para o turista – convida Ivone Ferraz, presidente do Sindicato dos Hotéis, Restaurantes, Bares e similares do Litoral Norte.
Na beira-mar de Tramandaí, Marivalda e Cláudio Matos fizeram sua parte. Gastaram uns R$ 5 mil para aprontar o quiosque Litorâneo, cujas paredes recém terminaram de pintar de verde. Para o próximo verão, prometem aos clientes nova estrutura. A atual já tem sete anos, mas o investimento em 2016 foi destinado à formatura da filha, Yasmin, 23 anos, graduada em engenharia civil pela Unisinos.
– Há famílias que a gente conhece desde que os filhos eram pequenos. Vimos crescer, casar, terem filhos. A gente tem Whats deles, tem o telefone... Rola caderninho. Tem quem nos dê R$ 500 já no início da temporada, porque sabe o investimento que fazemos e a dificuldade que enfrentamos no começo do verão. É graças a essas pessoas que a gente está aqui há 29 anos – conta Marivalda, que promete cerveja e milho mais baratos do que em Capão e Torres.
Do outro lado do Rio Tramandaí, na barra de Imbé, José Carlos Bonatti Pereira trabalha com gastronomia há 15 dos seus 54 anos. Em dois dias da ressaca de outubro, o mar invadiu seu restaurante. Os empresários fizeram um mutirão, e a tainha assada na brasa – com lenha, e não carvão, ressalta – está garantida aos visitantes:
– A gente não vai conseguir deixar todo mundo satisfeito. A gente faz de tudo para agradar. Mas tem gente que vem pra criticar. Vem estressada, ao invés de vir para curtir a praia, vem descarregar em nós.
O genro, Luciano Silva, 27 anos, que criou este ano um parque para food trucks, pub e espaço kids, admite a falta de um investimento maior do poder público e da iniciativa privada nas praias.
– Falta organização para nossas praias, a cultura de Santa Catarina é diferente da nossa. A gente tem uma visão de que as praias de lá são mais bonitas, mas temos nossas belezas também. Temos qualidades, tainha, culinária do petisco, tem gente que vem ver os botos na barra do Rio Tramandaí. O povo quer novidade, não a monotonia, todo ano igual – diz.
A posição de amor e ódio faz parte da subjetividade do gaúcho, é o famoso bairrismo, avalia Mário Corso. Ele considera que os gaúchos, na sua obsessão pelo mar, não olham para outras belezas, pouco exploradas, como as águas internas, as lagoas e os rios.
– Não consigo entender essa fixação de que as férias têm de ser no mar. O gaúcho é completamente desligado das lagoas. Por que fizemos essa escolha? Acho que é essa mística do gaúcho de ser tão do planalto, do cavalo – reflete.
A violência da ressaca de outubro não poupou nem uma das praias gaúchas mais bonitas. Na Guarita, em Torres, uma das falésias apresenta avançado estado de erosão. Em Capão da Canoa, as dunas onde Guilherme, Gustavo e Bianca, o trio do início desse texto, apostavam corrida também foram atingidas pelo mar. A cidade não é mais a mesma que seus pais conheceram, 50 anos atrás. Perto de onde a família brinca, o antigo Baronda cedeu espaço a uma área recém-construída para shows e dois chafarizes no calçadão, que seriam inaugurados nos últimos dias. No início da Pindorama, o histórico Hotel Riograndense deu lugar, há alguns anos, a um shopping. As barraquinhas de milho e caipirinha, que ficavam no calçadão, foram deslocadas para a faixa de areia. Os quiosques, maiores e mais modernos, são instalados e retirados a cada fim de veraneio, por exigência da legislação.
A família de Crissiumal chegou na quinta-feira, 8 de dezembro. Ficou até domingo. Mas, em janeiro, voltará. Eles são herdeiros de um ritual seguido por milhares e milhares de gaúchos a cada temporada.
– A gente sabe que tem lugares melhores – afirma Guilherme. – Mas não é o lugar que faz as nossas férias. O que importa é a disposição.