Viviane Machado, 42 anos, preparava-se para sair de casa, no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, numa manhã de domingo. Vestiu calça legging e camiseta, calçou os tênis. Seus pensamentos se alternavam entre a autoconfiança e o medo. Caminhou 20 minutos até a parada do ônibus, mas acabou por mudar de ideia antes de embarcar. A sequência frustrada se repetiu quatro vezes ao longo do ano. O motivo do assombro: a professora nunca aprendera a pedalar e não conseguia juntar coragem para comparecer à primeira aula de ciclismo. A cada nova desistência de última hora, sobrevinha um intenso mal-estar.
– Me sentia uma fracassada – descreve.
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No início de 2016, Viviane decidiu solucionar a pendência que se arrastava desde a infância. Descobriu a Biciescola, projeto de mobilidade urbana gratuito destinado a crianças, adolescentes e adultos. Logo estava matriculada em uma turma, mas até que fosse ao Parque Marinha do Brasil transcorreria quase o ano inteiro. Viviane enfileirou desculpas para as faltas: provas na faculdade de Ciências Biológicas, excesso de trabalhos dos alunos para corrigir, cólicas.
Nascida em uma família rigorosa e conservadora, Viviane pouco pôde brincar quando pequena. Interrompeu os estudos no 6º ano do Ensino Fundamental para trabalhar e ajudar no orçamento doméstico. Em uma de suas lembranças marcantes, ela observa três meninas da vizinhança rodando em novíssimas bícis Caloi Ceci, sucesso do final dos anos 1970. Viviane desejaria, vida afora, uma Ceci azul com cestinho.
– A vontade de pedalar e sentir o vento na cara nunca passou. Quanto mais o tempo passava, aumentava o medo de cair, a vergonha de não saber – recorda Viviane, que provocava riso e espanto ao revelar sua incapacidade de girar os pés sobre os pedais.
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Em meados de setembro, ela finalmente conseguiu vencer o trajeto de ônibus até o Marinha para seu primeiro encontro da Biciescola. Atrasada – uma autossabotagem, acredita –, não viu ninguém ao chegar ao ponto de encontro. “Ufa, me safei”, pensou. Pelo celular, iniciou uma troca nervosa de mensagens com Tânia Pires, uma das idealizadoras do projeto. Primeiro, informou que estava perdida. Em seguida, que havia encontrado o local. Por fim, que tinha desistido de participar e estava indo embora.
– Fica aí, não sai! – ordenou Tânia.
Em quatro anos, quase 2 mil pessoas já passaram pela Biciescola. Tânia, 65 anos, sabe o que significa atravessar o tempo sem qualquer intimidade com a magrela: aprendeu a pedalar apenas aos 61, numa das primeiras turmas do curso. A maior parte dos interessados é de adultos, muitos com um histórico que inclui episódios de intenso sofrimento nos primeiros anos da existência.
– A bicicleta, aparentemente, é uma coisa engraçadinha, lúdica, mas não é. Não é tão fácil como a maioria da sociedade pensa. Alguns alunos têm paredes enormes. O que a gente pode fazer é abraçar, acarinhar e entender o trauma de cada um. Tem muitos que choram na aula. Digo que eles já são campeões perto dos que se inscreveram e ficaram dormindo – afirma Tânia.
Ainda que novas configurações familiares tenham surgido, ensinar a pedalar, observa Tânia, sempre foi uma tarefa muito associada à figura paterna, o que dá ao processo um forte contorno emocional.
– É o pai que empurra o filho. Tem muito a ver com a segurança que o pai vai dar – explica a empreendedora social.
Conduzida por uma monitora, Viviane juntou-se aos outros alunos – homens e mulheres de diversas faixas etárias. Colocou o capacete e recebeu a primeira tarefa: subiu na bíci e, em um trecho em declive no gramado, começou a tentar se movimentar, apoiando-se no chão. Na terceira tentativa, já conseguiu erguer os pés. Ao final da aula, era capaz de se equilibrar com os dois pés nos pedais – e até arriscou uma pedalada.
– Parecia que eu tinha conseguido vencer uma batalha – define.
Uma semana depois, não só pedalou como saiu em disparada, o coração batendo acelerado com a ousadia. A plateia de professores e colegas se surpreendeu.
– Olha lá! Se emocionou! – gritou alguém.
Os próximos objetivos de Viviane incluem conseguir firmeza para dar a partida em terreno plano, sem ter de pegar embalo em uma descida, e comprar a primeira bike. Pesquisa em briques, mas também cogita economizar para a tão sonhada Ceci, agora disponível em uma versão modernizada.
– Não precisa ser azul, mas quero o cestinho – frisa. – Vou botar um buquê de flores dentro. Ou meu gato, Eduardo, com uma fitinha no pescoço – ri.
A notícia da aventura recém-iniciada tem sido compartilhada aos poucos – com os mais chegados, Viviane comenta que, enfim, resolveu encarar o fantasma. A partir deste final de semana, em que a professora ilustra, orgulhosa, esta reportagem, a boa-nova se tornará irrefreável, ganhando a cidade, o Estado, o mundo. Ajude a espalhar: Viviane aprendeu a andar de bicicleta.