Uma medida temporária, instituída durante o Jubileu da Misericórdia, ganhou do papa Francisco caráter definitivo nesta segunda-feira: todos os padres poderão absolver o "pecado do aborto". Antes, somente bispos ou clérigos designados por ele podiam conceder o perdão nestes casos.
A decisão do Pontífice foi publicada em uma carta apostólica e saudada por autoridades religiosas brasileiras como um "ato misericordioso". Para grupos feministas, católicos ou não, a medida é um avanço por parte da Igreja e deve ser encarada como um convite para ampliar a discussão sobre a descriminalização do aborto. Francisco também estabeleceu uma data para uma "Jornada Mundial dos Pobres".
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No documento, Francisco repetiu que o "perdão de Deus não tem limites" e pediu que os sacerdotes sejam generosos ao receber a confissão dos fiéis. "Para que nenhum obstáculo se interponha entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, de agora em diante concedo a todos os sacerdotes, em razão de seu ministério, a faculdade de absolver a quem tenha procurado o pecado do aborto", escreveu o Papa na carta.
Para dom Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre, o aborto é a "eliminação de uma vida" e, por isso, continuará sendo para sempre um pecado dentro da doutrina católica. A possibilidade do perdão para este ato,
no entanto, vem para minimizar as marcas deixadas por este processo.
– Uma pessoa que procura o sacerdote com este drama, de alguma forma, expressa arrependimento. Um aborto é sempre uma dor especial. Então, a possibilidade de todos os padres concederem o perdão, além de ir ao encontro de uma necessidade pastoral, pode ajudar as mulheres a aliviar o sofrimento, porque uma ação destas sempre deixa marcas muito dolorosas – afirma o arcebispo.
Na avaliação de Luiz Carlos Susin, frei, teólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a concessão do perdão por todos os padres é uma "atitude misericordiosa" por parte da Igreja.
– Foi um acento dado à questão para mostrar até onde a misericórdia é capaz de chegar. A possibilidade do perdão, no entanto, não deve ser interpretada como licença para a realização do aborto, que continua na área do pecado – reforça Susin.
Espaço ampliado para novas discussões
Para a coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, Rosângela Talib, a possibilidade do perdão não irá refletir em um número maior de abortos. Na opinião dela, este é um ato de foro íntimo, que vai além de qualquer proibição. Para Rosângela, a absolvição cedida pela Igreja é um alento, principalmente em países como o Brasil, onde boa parte das mulheres é da religião católica.
– Nem a proibição legal nem a religiosa surtem efeito. As mulheres vão continuar abortando quando acharem necessário. Mas o perdão reforça uma posição de escuta, de compreensão e de acolhimento da Igreja. Apesar de ela continuar vendo o aborto como um pecado grave, a condenação é menor. Esses dias, ouvi o relato de uma senhora de 70 anos que relacionava tudo o que havia dado errado em sua vida ao aborto que ela fez quando tinha 18 anos. Ela carregou durante toda a vida uma culpa desnecessária. É por isso que o perdão é um alento – afirma Rosângela.
Telia Negrão, coordenadora do Coletivo Feminino Plural, de Porto Alegre, considera o anúncio do Papa um avanço, que deve servir como convite para discussões mais aprofundadas sobre a descriminalização do aborto:
– A decisão do Papa caminha para o reconhecimento do aborto como um tema dos direitos humanos, e não da religião. Porque este é um assunto da sociedade, que diz respeito a cada mulher individualmente, e não à Igreja. O que continua pendente, no entanto, é uma discussão maior sobre o aborto e sua descriminalização. O aborto só é crime porque nele está embutida a ideia de pecado. Que esta medida da Igreja sirva como um convite para um debate mais amplo sobre o assunto.
Mão estendida aos integristas
Sempre preocupado por não excluir ninguém do perdão divino, o papa estendeu também a validade das absolvições concedidas pelos sacerdotes integristas da Irmandade Sacerdotal São Pio X, comunidade fundada por Marcel Lefebvre que rompeu com a Igreja em 1988.
A comunidade saudou a notícia como um "gesto paternal", embora denuncie regularmente a benevolência excessiva da Igreja em relação ao mundo contemporâneo. Após marcar este ano santo por uma série de gestos em favor dos excluídos, o papa também pediu em sua carta que o mundo tenha "imaginação" para encontrar novas formas de lidar com os mais pobres.
"O mundo continua a produzir novas formas de pobreza material e espiritual que atacam a dignidade das pessoas. É por esta razão que a Igreja deve estar sempre alerta e pronta para identificar novas obras de misericórdia e aplicá-las com generosidade e entusiasmo", insistiu.
Como sinal desta preocupação, Francisco estabeleceu uma "Jornada Mundial dos Pobres", que acontecerá todos os anos em um domingo em meados de novembro, na tradição do Jubileu dos sem-teto que ajudou a trazer milhares de excluídos no dia 13 novembro ao Vaticano.
"Será um dia que ajudará as comunidades e cada pessoa batizada a refletir sobre a maneira como a pobreza está no centro do Evangelho e sobre o fato de que, enquanto houver (um pobre) à porta, não poderá haver justiça nem paz social", explicou.
*Com agências