Norton F. Correa
Antropólogo
O quilombo dos Palmares foi fundado nos finais dos anos 1500 por negros escravizados que fugiam das fazendas. Durante os cerca de cem anos de sua existência, várias gerações, ali, tiveram a experiência de viver em liberdade. O quilombo foi atacado várias vezes pelos portugueses até ser vencido, em 1694. Quem comandou os palmarinos foi Zumbi, um grande guerreiro e estrategista militar, morto depois, em 20 de novembro.
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Zumbi inspirou o poeta e militante negro gaúcho Oliveira Silveira a sugerir esta data como Dia da Consciência Negra. Tive a honra e o prazer de ser seu amigo. Um dos pontos que me faziam admirá-lo como pessoa, intelectual e militante foi sua sensibilidade em perceber que exemplos de resistência e expressões de negritude estavam presentes e fortes em manifestações populares, como o maçambique de Osório e o batuque gaúcho. Os primeiros, por mais de cem anos, coroaram rainhas Jinga, personagem histórica que viveu em Angola, no século 17, e resistiram a muitas tentativas de aniquilação do maçambique por parte de padres da região. E os batuqueiros, além de possuírem uma visão de mundo com muitos elementos de origem no Benin e na Nigéria, cantam em línguas e cultuam divindades destas culturas há mais de 150 anos. Também resistiram a pressões da sociedade e da Igreja. O poeta, que acompanhava essas manifestações de perto, tirou delas a inspiração para vários de seus poemas. E esses, por expressarem o "espírito" desses grupos, podem ser considerados como etnopoesia. A arte também é uma forma de captar a realidade.
Uma série de medidas, por parte dos senhores, visava desumanizar e reduzir os escravizados aos extremos da subalternidade e da submissão, para atuarem como máquinas de trabalho. Humilhá-los constantemente e aplicar-lhes castigos cruéis, além de morte lenta através de tortura, também faziam parte do processo. E eles eram considerados como inferiores aos animais.
A escravidão durou cerca de 300 anos e atingiu muitas gerações, deixando marcas e estigmas fortes na população negra. Depois da Abolição, o racismo e a discriminação racial se encarregaram de manter os afrodescendentes num círculo de pobreza de que poucos conseguem sair. Dos 10% mais pobres da população brasileira, 80% são negros.
A baixa renda, que resulta em má qualidade de vida e frustrações, associadas a racismo e discriminação, gera igualmente baixa autoestima e sentimentos de inferioridade. O historiador Décio Freitas diz, com razão, que o Brasil é um país inconcluso, porque os negros são considerados cidadãos de segunda classe.
Os livros de História não mostram, mas foi a mão de obra escrava que construiu, no mínimo, as bases da economia do Rio Grande do Sul e do Brasil. E o enorme lucro com o tráfico e a produção escrava deu à Europa a condição de Primeiro Mundo. E ainda temos a intensa participação negra na cultura brasileira.
Promover a consciência negra, penso eu, seria sensibilizar os afrodescendentes quanto ao seu valor, igual ao de quaisquer outras pessoas, refletir sobre o que seus ancestrais fizeram – e o que eles fazem – pelo país, levantar a cabeça com a dignidade que merecem e batalhar e reivindicar direitos por igualdade para atingirem a condição de cidadãos. Mas também é imprescindível a existência de uma consciência branca que contribua para a viabilização deste processo.