As luzes da sala já haviam sido apagadas há mais de uma hora. Na tela gigante, lá na frente, um dragão enorme e barulhento voava de um lado a outro com um menino sobre a garupa. Não faltavam aventuras na floresta do filme: o garotinho foi descoberto e levado para a cidade, um pessoal do mal prendeu o dragão... Mas, lá pelas tantas uma menina de cinco anos, desconcentrou-se. E rompeu o silêncio do lugar:
– Ô, tu já veio aqui? – questionou em volume bem maior do que o necessário para chegar à interlocutora, sentada na poltrona ao lado.
A professora, da Escola Municipal Infantil Unidos da Paineira, do bairro Partenon, repreendeu. Não se podia falar assim tão alto naquele lugar. Mas também achou graça: a pequena dera-se conta de que, pela primeira vez, estava sentada em uma sala de cinema. E não pôde se conter com uma fala baixinha.
O entusiasmo dela era o mesmo de boa parte das 400 crianças, a maioria em situação de vulnerabilidade social, que assistiram ao filme Meu amigo, o dragão na tarde desta segunda, em Porto Alegre. A sessão gratuita, iniciativa do GNC Cinemas em parceria com a Disney, foi realizada na sala 1 do cinema do Praia de Belas Shopping. Outras cem crianças, também de escolas públicas, abrigos e acolhidas por associações e ONGs da Capital, assistiram ao filme Cegonhas em uma sala ao lado, já que a primeira ficou cheia rapidinho.
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– Já dá para comer? – perguntava a cada pouco um dos pequenos espectadores, de olho no saco de pipoca disposto em cada poltrona.
– Só quando começar o filme – respondeu um menino de seis anos, sendo logo interpelado por um colega ao lado:
– Mas é que eu sempre durmo no filme.
– Cinema é "relaxação", né? – concluiu o primeiro.
Falava como um grande cinéfilo – e leva jeito para a coisa. Mas a verdade é que ele também estava em sua estreia na sala de cinema. Enquanto o filme não começava, lembrou que havia assistido a um filme do Charles Chaplin na escola – "Sarles Saplin", segundo ele. E tratou de aproveitar o corredor em frente à poltrona para mostrar como andava o protagonista do filme. Colocou os pés na posição em que os ponteiros de um relógio ficam quando marcam 10 para as duas e deu uns passos para a frente. Todos riram. Quando perguntado se havia cor no filme, respondeu, sabiamente: "Sim, duas, preto e branco". E ponderou: "Só que ninguém falava".
Ação era presente de Dia das Crianças
As luzes se apagaram, a sessão começou e o comportamento da plateia pelas duas horas seguintes foi mais exemplar do que o de muito adulto. Não tinha celular algum emitindo luzes e barulhos.
– E tem de fazer "simêncio" – já havia alertado uma menina de quatro anos, de uma instituição da Lomba do Pinheiro.
A ordem foi cumprida, salvos alguns comentários pertinentes durante o filme:
– Eu quero andar no dragão. Aiiii, morreu? Tadiiiiiinho!!
– Ele não está morto, só está dormindo.
– Profe, te amo. Tu tem mais bala?
– Ele (o dragão) não morde?
– Como que ele vai morder se ele é amigo?
– Eu estou chorando porque isso é amor verdadeiro!
A sessão de cinema, que era um presente de Dia das Crianças para os 500 pequenos espectadores, acabou também se revertendo em regalo para os professores. Leonete Cassol, pedagoga da Escola Municipal de Ensino Fundamental Lidovino Fanton, na Restinga Velha, chegou e saiu da sala de cinema emocionada:
– Enquanto subíamos as escadas rolantes, reparei que um dos meus alunos, de 13 anos, nunca havia entrado em um shopping. Ele olhava tudo com admiração. Não consigo não me surpreender com essas coisas. São nestes momentos que nos damos conta do quanto a cultura está distante da população da periferia. O cinema para alguns é algo tão banal. Mas para outros, para estas crianças que estão aqui, é um grande evento.
O espetáculo acabou com palmas. E pipocas espalhadas por t-o-d-o-s os lados.