Jaime Lerner tornou-se um dos arquitetos e urbanistas mais conhecidos do Brasil não tanto pelos projetos que saíram de sua prancheta, mas principalmente na condição de gestor público. Em 1971, durante a ditadura militar, ele filiou-se à Arena, o partido de sustentação do regime, e foi nomeado prefeito de Curitiba. Tinha apenas 33 anos e uma série de ideias inovadoras na cabeça: implantou um modelo de transporte com corredores exclusivos para ônibus, criou parques a torto e a direito e transformou em calçadão exclusivo para pedestres a principal via da capital paranaense. Passadas quatro décadas, ele tem no currículo outros dois mandatos como prefeito de Curitiba (o último deles conquistado pelo voto popular), um período como governador do Paraná e a honraria de ter presidido a União Internacional dos Arquitetos. Acima de tudo, virou uma referência. Influenciou iniciativas no Brasil e no Exterior e passou a ser visto, por muitos, como uma espécie de guru quando o assunto são os temas urbanos.
Parte dessa história é contada no documentário Jaime Lerner – Uma história de sonhos, cujo lançamento trouxe-o a Porto Alegre no dia 29 de setembro, às vésperas do primeiro turno das eleições. ZH aproveitou a ocasião para conversar com o arquiteto, não só a respeito de suas concepções a respeito das cidades em geral, mas também sobre os projetos que, na condição de prestador de serviços, ele assina em Porto Alegre – a polêmica revitalização do Cais Mauá e a reurbanização da orla, pela qual foi contratado sem concurso público pela prefeitura, o que gerou protestos da seção local do Instituto dos Arquitetos do Brasil.
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O que significa para o senhor esse documentário que o trouxe a Porto Alegre?
É uma coisa nova na minha vida. Depois de mais de 50 anos de arquitetura, depois de 15 anos desde que deixei a política, decidi me dedicar a coisas que me dão alegria. Outra coisa: estou cansado de fazer o que eu já sei. Criar coisas novas me dá uma imensa alegria. Esse filme foi uma curtição. Entrei até na música. Já havíamos tido outra alegria, eu e o Deiró (Carlos Deiró, diretor do filme), de ganhar um prêmio em um festival de cinema de Nova York sobre sustentabilidade. Era um filme que tentava mostrar o que é sustentabilidade, de maneira bem simples, porque não gosto de complicar as coisas. Gosto, por exemplo, de ensinar a cidade para as crianças. A cidade não é tão complexa quanto os vendedores de complexidade querem que a gente acredite, porque eles querem nos vender a complexidade.
Em que situações o senhor identifica a tentativa de vender a cidade como algo complicado?
É difícil para as pessoas entender as coisas simples. Há uma frase que registrei uma vez, de um escritor, falando com um amigo: "Desculpa, eu fiz uma carta comprida porque não tive tempo de fazer uma carta mais curta". Todos esses movimentos que procuram adjetivar a cidade – smart cities, cidades resilientes, cidades competitivas –, é tudo adjetivar uma coisa que não precisa. Existe a cidade boa e existe a cidade que não é boa. Às vezes entram em soluções muito complicadas. Por exemplo, o mundo inteiro está falando nos carros sem motorista. E esquecem do mais importante, que esses carros vão continuar ocupando espaço, o que é ruim. Se você pensar a moradia, o trabalho, o lazer e a mobilidade em conjunto, fica muito mais fácil resolver as coisas. É na concepção que você resolve, e não tentando vender tecnologias.
No capítulo da mobilidade, quando tempo é necessário para fazer uma transformação no transporte público, com implantação do BRT e da tarifa única dentro do sistema?
Três anos. Três anos.
Em Porto Alegre, o processo está andando há muito mais tempo do que isso. Quando não avança, significa que tem problema de concepção?
Não. Às vezes é a burocracia. Fica tudo mais complicado. No Brasil, a gente faz tudo para não fazer.
E qual seria o segredo para fazer com agilidade?
A concepção é importante. E começar. Começar é fundamental. Se você quer criatividade, comece. Porque a gente não pode ter todas as respostas. Você começa a transformação e deixa um espaço para a população te corrigir. O importante é começar.
Essa ideia de começar não gera o risco de que depois apareçam falhas provocadas pela falta de planejamento?
A pior falha é não começar. Claro que a gente está sujeito a riscos, a enganos, mas faz parte. O principal é a proposta. Se você quer fazer acontecer, tem de ter uma ideia que a maioria entenda como desejável. Muitos países começam com diagnósticos complicados e ficam projetando a tragédia, o dia em que não vai mais ser possível respirar, o dia em que vai faltar isso ou aquilo.
Pergunto isso porque, em Porto Alegre, temos um longo histórico de projetos que foram começados e que depois tiveram de voltar atrás por falhas de planejamento.
Qual deles?
Por exemplo, por falha no projeto básico, não se identificou a presença de uma rocha no local de uma passagem de nível, o que encareceu e atrasou a obra. No próprio projeto do BRT, o concreto foi colocado nos corredores e depois teve de ser removido, por não ter sido bem feito.
Isso é natural. O planejamento tem de resolver bem toda essa parte. Porto Alegre fez o muro (da Mauá) tentando evitar a máxima tragédia, o dia em que houvesse a maior enchente da História. Por causa desse muro, você não vê o Guaíba. A gente não pode querer evitar a máxima tragédia. O mais importante é a tragédia do dia a dia.
Estamos acostumados a atrasos gigantescos nos projetos. O senhor citou a burocracia. Há também amadorismo dos entes públicos?
Não é amadorismo. Você tem a concepção certa ou você não tem.
Quando atrasa em relação ao cronograma, o que isso revela?
Muita coisa. Principalmente medo de começar. Eu comecei com uma equipe muito jovem, e a gente sabia que tinha de arriscar, que teria coisas que talvez não fossem o esperado, mas nós íamos corrigindo pouco a pouco, aperfeiçoando.
O senhor é um arquiteto e urbanista que entrou na política e pôde colocar suas ideias em prática. As pessoas que administram nossas cidades têm ideia do que é necessário fazer para tornar as cidades mais humanas?
Em geral, têm. O problema é que, às vezes, as condições políticas não favorecem. Mas quando existe vontade política, as coisas acontecem.
Mas ainda vemos os administradores apostarem muito na construção de viadutos.
É a famosa viadutagem.
E o viaduto tem como impacto desumanizar a cidade, não?
É. Sempre digo: se querem resolver bem a cidade, esqueçam o automóvel. As nossas cidades são muito pensadas para o automóvel. Eles ocupam espaço demais. Temos outras soluções de mobilidade.
Se vemos reiteradamente as administrações, inclusive com apoio de grande parte da população, investirem em obras de viadutos e de grandes avenidas, não fica demonstrada falta de consciência sobre o que torna a cidade mais humana?
Existem coisas que o tempo acaba mostrando. Sempre digo que o carro é o cigarro do futuro. Quem é que poderia imaginar, 20 anos atrás, que você não poderia mais fumar num recinto fechado? Então o automóvel vai ter espaço na cidade, mas a maneira de utilizar precisa mudar. Por exemplo, para viagens e para passeios. Para o dia a dia, não.
O senhor diz que o automóvel é o cigarro do futuro, mas pensando na sua trajetória, faz mais de 40 anos que o senhor fechou a Avenida XV de Novembro, em Curitiba, para o tráfego de veículos. Parece que o tempo passou, e a lição não foi aprendida.
Muitas cidades fizeram áreas de pedestres. Mas não é só isso. O importante é trazer o jovem para o centro da cidade. Tem de criar o espaço e ocupar o espaço. No centro de Porto Alegre, é muito importante recuperar a vista do Guaíba, recuperar a presença do jovens ali. Dá para fazer muita coisa. Não tem uma regra. Dá para transformar o espaço público em espaço agradável.
O viaduto faz o contrário disso.
Pois é. Quando fui prefeito, todas as cidades estavam realizando grandes obras viárias. Nós não fizemos. Fizemos áreas para as pessoas.
Em Porto Alegre, tivemos recentemente a construção de dois viadutos à beira do Guaíba (junto à Rodoviária e nas imediações do Estádio Beira-Rio). São obras que vão contra essa ideia?
Depende do viaduto. Tem viadutos que são necessários. O que acho errado é pensar a cidade só para o automóvel.
Há no momento um fenômeno de migração do transporte coletivo para o Uber. Qual o impacto de diminuir a quantidade de pessoas que usam o ônibus?
Isso não é bom. Mas não é por causa do Uber. É por causa da falta de qualidade do transporte coletivo. Você só muda se tem uma alternativa melhor. O Uber é um transporte individual, não resolve o problema de mobilidade.
Poro Alegre aposta há muito tempo no metrô, uma promessa que reiteradamente não se cumpre. A cidade deveria desistir?
Muitas cidades vão ter uma ou duas linhas de metrô. Mas o importante é ter uma rede completa. Isso não é possível. E nem precisa. Em São Paulo, 86% das pessoas se deslocam na superfície. O mais importante é operar bem essa superfície. É metronizar o ônibus, dar ao ônibus a performance do metrô.
O país vive a era do condomínio fechado e do shopping center. Qual o impacto dessas formas de morar e de comprar?
Sou contra isso. Primeiro, você não pode separar as funções urbanas. Toda vez que separa morar aqui, trabalhar lá, lazer lá, não é coisa boa. Outro aspecto é criar guetos de gente muito rica e guetos de gente muito pobre. Um vai ser inimigo do outro. A cidade perde a diversidade que deveria ter. E a moradia custa muito caro. Sabe onde a moradia é barata? Em Paris. Você paga 130 mil euros por um apartamento num bom quartier. Claro, o apartamento tem 12 metros quadrados. Mas não importa, não precisa mais do que isso, porque está tudo ali na rua. O que esse pessoal faz com condomínio fechado é trazer tudo que está na rua para dentro do muro alto. Isso custa caro.
Isso significa que o condomínio fechado e o shopping center sugam a vitalidade das ruas?
Claro. O shopping center, depende onde. Fora da malha urbana é ruim. Dentro, reciclando um prédio histórico, pode ser bom. As coisas que nos afastam da cidade não são boas. O Minha Casa, Minha Vida, Meu Fim de Mundo não pode ser bom.
Que papel o poder público poderia ter para reverter essa lógica?
É não permitir. Numa cidade como Nova York, Paris, você não vê shopping. Tem movimento de rua. Eu realmente não gosto de shopping. Qual é a graça de um lugar onde as lojas são sempre iguais? E o shopping tem uma mar de automóveis embaixo. É uma lógica equivocada.
Na situação atual, em que os municípios têm poucos recursos, os grandes investimentos são privados, como na construção de shoppings, às vezes com qualidade arquitetônica ruim. Como fazer para que esses recursos, os maiores disponíveis hoje, revertam em algo bom para a cidade e não só para o empreendedor?
É importante que o planejamento da cidade não aceite as coisas que vão contra a cidade. O poder público tem de intervir.
Uma das principais preocupações nas cidades brasileiras é a violência. Como fazer as pessoas saírem às ruas, diante desse clima de medo?
Em qualquer bairro do Rio tem gente na rua. Você se sente mais seguro. São Paulo não tem gente na rua, porque todos os prédios têm seus esquemas de segurança próprios. Você anda, só tem entrada de carro. Não há continuidade. Então você não se sente seguro. Há esse raciocínio, vou para o shopping, que é mais seguro, vou para o condomínio, que é mais seguro. Não é. Quanto mais alto o muro que você construir, mais gente vai te esperar na hora da saída.
O que um administrador municipal pode fazer em relação ao problema?
Ele tem tudo na mão, tem instrumentos, tem lei. Uma vizinhança diversificada, com vários usos, vários níveis de renda, é muito mais segura do que uma vizinhança isolada. Nunca deixei, nos programas de habitação, que acontecesse moradia só para uma faixa de renda. Quem escolhe o condomínio sabe qual é a consequência disso. Cabe a nós alertar que a diversidade, a convivência, a mistura de renda, a mistura de funções, isso é que torna a cidade boa.
Uma das coisas que tornaram o senhor conhecido foi a criação de muitas áreas verdes em Curitiba. Hoje restam, nas metrópoles brasileiras, poucas áreas não exploradas pelo mercado imobiliário. Como reverter esses derradeiros espaços para o bem público?
Há instrumentos. Curitiba tinha meio metro quadrado de área verde por habitante. Hoje tem 60 metros quadrados. E a população triplicou. Nós conseguimos segurar as áreas verdes que pertenciam à iniciativa privada. A gente propunha: olha, nós vamos comprar dois terços da sua área, que vão ser públicos. Você vai parar de pagar impostos, mas vai ter de nos vender por um preço razoável, porque, morando perto de um parque público, a sua área vai valorizar. Foram propostas nesse sentido. Você tem de tomar uma iniciativa em relação a áreas verdes e áreas importantes para a memória da cidade. Tem de preservar.
O senhor é um dos autores do projeto de revitalização do Cais Mauá. Esse projeto oferecia algumas coisas para a cidade, como uma espelho d'água ao longo do muro da Mauá e um rebaixamento da avenida, com um parque passando por cima dela, o que promoveria a interligação entre o Centro e a orla. Esses dois elementos foram eliminados. Isso o frustrou?
Às vezes a coisa não acontece exatamente como pensamos, mas a recuperação daquele casario, a transformação em espaço de lazer, cultura e encontro, vai ser fundamental. Aquela questão da água no muro ainda acredito que dá para fazer, mais cedo ou mais tarde.
Esses dois itens eram justamente aqueles que pareciam oferecer algo à cidade sem gerar um lucro para o empreendedor. A retirada não desfigura o projeto que foi apresentado?
São detalhes. O mais importante foi ter encontrado um grupo que queira restituir aquilo para a cidade. Claro que vai ter lucro. Mas a cidade vai ganhar.
O andamento das obras está muito atrasado. Existe na cidade um clima de descrença.
Veja, o Cais Mauá é um empreendimento privado. Sabemos da dificuldade, nestes últimos anos, de a iniciativa privada começar projetos como esse. Vai chegar um momento em que isso será retomado. Porto Alegre não pode perder essa oportunidade.
O senhor trabalhou com esse grupo responsável pelo empreendimento, fez o projeto. Confia que, apesar das demoras, eles são sérios?
Não sou fiador da obra. Quem deve verificar se o grupo tem condições ou não são os poderes públicos.
Nesse período em que a obra esteve parada surgiu um movimento, na cidade, reivindicando a revisão do empreendimento, com o ponto de vista de que deveria ser um projeto público.
Não dá para confundir espaço público com obra pública. Você pode ter um espaço público e a obra não ser pública.
Alguns pontos do projeto geram resistência, como os edifícios e o shopping center que estão previstos para a beira do Guaíba.
Não, não é. É uma área de compras. O pessoal usa a palavra shopping center, mas são áreas de compras que permitem ver o Guaíba, não é uma coisa fechada. E os prédios são de uma etapa posterior.
Os prédios e o centro de compras não geram impacto negativo para a cidade?
No meu entender, não. Não é na área dos armazéns, é fora dessa área. Então tem dois ou três prédios que ajudam a viabilizar o empreendimento. Toda obra tem a sua crítica. Já cansei de responder à crítica. Não é um shopping center. São áreas de compra.
O senhor também projetou a reurbanização da orla. Lá, a crítica é sobre a forma como ocorreu sua contratação pela prefeitura, sem concurso público. Isso gerou desconforto para o senhor?
Nenhum. Muitas vezes, como prefeito, adjudiquei obras por notório saber, porque sabia qual profissional era bom para aquela obra. Uma obra que tem tantas nuanças, às vezes não é através do concurso a melhor maneira. A escolha foi da prefeitura. E acho que eles escolheram bem.