É possível, sim, resgatar a infância em comunidades assoladas pela violência. É o que pretende comprovar o documentário Infância falada, produzido pelo Centro de Análises Econômicas e Sociais (Caes) da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), em parceria com a produtora porto-alegrense Conta pra Mim Filmes. O filme, que será lançado hoje, às 19h, no Instituto Goethe, em Porto Alegre, mostra, ao longo de seus 53 minutos, experiências bem-sucedidas em projetos sociais que envolvem crianças e apostam no diálogo como solução de conflitos e diferenças.
A ideia do documentário, que em julho foi exibido em Viena, na Áustria, durante 3º Fórum da Associação Internacional de Sociologia, surgiu a partir de um mapeamento dos impactos da violência sobre crianças de zero a oito anos, realizado entre 2012 e 2014 em 15 favelas de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Recife. Mas, diferentemente da pesquisa, que salientou o violento cotidiano das comunidades pobres, o filme foca em soluções criativas para a socialização das crianças, apontando caminhos para que, desde cedo, permaneçam distantes das más influências e, por consequência, longe do crime.
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– Pelos projetos, a gente vê que o diálogo é uma "tecnologia" avançadíssima. Você tem de aplicar todo dia, e isso se incorpora, passando a fazer parte de sua rotina – afirma o coordenador da pesquisa, Hermílio Santos, professor da Escola de Humanidades da PUCRS e um dos diretores do filme.
Além das três capitais, os produtores também buscaram iniciativas positivas nas cidades de Araçuaí (MG) e Nova Olinda (CE). Financiado pela Fundação Bernard van Leer, da Holanda, Infância Falada conta com versões em inglês e alemão e procura mostrar que a falta de diálogo é, na maior parte das vezes, a causa de violência nas favelas pesquisadas.
– O filme não podia abordar todos os itens da pesquisa. A gente escolheu o mais importante, a falta de diálogo. Porque todo este projeto não visa só a identificar os problemas, mas também a propor ações transformadoras. Com a pesquisa, é possível indicar o que está errado e como se pode agir nesses locais – diz a jornalista Kamila Almeida, codiretora do filme.
MÚSICA E ARTE CONTRA O CRIME
Por meio de músicas e brincadeiras, o projeto Ser Criança utiliza horários complementares à escola formal e espaços comunitários de Araçuaí para desenvolver o lado lúdico e auxiliar na socialização, na formação da cidadania, no despertar da autoestima e no estímulo à solução de conflitos por meio da conversa entre os seus participantes, em sua maioria vindos de regiões pobres da cidade, situada no Vale do Jequitinhonha (MG).
– Não tem diálogo. As pessoas não se entrosam, não conversam umas com as outras. Então, qualquer coisinha é motivo de uma briga, de um conflito. Eu já vi uma vizinha agredindo a outra, eu já vi uma morte – conta Emily, 14 anos, que faz parte do projeto, segurando o choro. – O moço morreu porque o outro atirou nele – completa.
Na Favela da Maré, a experiência de criação de uma orquestra local voltada para os jovens é bem avaliada.
– No começo, achei que seria mais um projeto que não ia a lugar nenhum. Na escola mesmo, todo projeto que chegava não demorava muito tempo – comemora Neusa, mãe de Giovanna, 17 anos, que hoje toca violino na orquestra.
Além do filme, a pesquisa do Caes/PUCRS também será divulgada futuramente por meio de um livro, ainda em fase de preparação. A entrada para o lançamento do documentário é franca. A partir de novembro, o filme será disponibilizado no YouTube. Por enquanto, o teaser pode ser visto no link zhora.co/infanciafalada.
DOIS PROJETOS, MUITOS SONHOS
– Boa tarde, Nova Olinda, está começando mais um Submarino amarelo, na apresentação da Alícia – diz a pequena locutora, ao microfone da Casa Grande FM 104.9, da Fundação Casa Grande.
No ar desde 2012, a iniciativa conta com a participação de crianças na cidade cearense de Nova Olinda. Na programação, Alícia, de 13 anos, conta histórias, toca músicas e lê notícias que envolvam crianças.
– Posso dizer que a fundação salvou a minha vida. Eu não queria estudar, não queria fazer nada – relata a menina, que, muito pequena, assistiu à mãe ficar em estado vegetativo. – Foi o momento de acordar e pensar "não posso ficar assim". Tinha de estudar, de me interessar, de continuar a vida. – conta Alícia, com maturidade de gente grande.
Já na Favela da Maré, uma das mais violentas do Rio, o projeto Orquestra Maré do Amanhã envolve mais de 20 crianças, da comunidade e de outros núcleos da capital fluminense.
Cristiano, 18 anos, jogava futebol em um dos grandes clubes do Rio. Depois de um acidente, o jovem ficou quatro anos andando de muletas e acabou entrando em depressão.
– Não pude completar um sonho que eu tinha, que era ser jogador de futebol. Eu gostava de música, então falei "pô, vou tentar a sorte". Eu vim, fui o primeiro flautista e estou aí até agora – conta.
CONHEÇA OS PROJETOS
Projeto Ser Criança (Araçuaí/MG)
Atende a cerca de 160 crianças no turno inverso ao da escola, oferecendo atividades como coral, fábrica de móveis e de software, além de um cinema. Ao iniciar cada turno, as crianças são recebidas em uma grande roda, espaço onde ocorrem os debates e as combinações para o dia e para a semana. Brigas, desobediências, dúvidas, conquistas, tudo é debatido na roda, estimulando as crianças a refletirem sobre as suas atitudes.
Fundação Casa Grande (Nova Olinda/CE)
A Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri é uma ONG criada em 1992. Embora adultos trabalhem no local, o protagonismo infantil se mostra em todos os aspectos. A gerente do museu, por exemplo, tem 11 anos. A ideia é que os grandes cuidem dos pequenos e vice-versa, desenvolvendo o senso de responsabilidade e a autoestima. A entidade conta com a rádio Casa Grande FM, cujos programas são apresentados por crianças e adolescentes, sem supervisão de adultos.
Favela News (Recife)
Uma equipe formada por quatro jovens repórteres vai às ruas das favelas do Recife para questionar a comunidade sobre o que de bom ocorre na região, produzindo vídeos publicados na internet. O projeto utiliza mídias digitais para oferecer meios de reconhecimento a moradores e para destacar o lado bom da favela: seus líderes, sua educação, seu trabalho, sua arte, sua energia para mover o mundo.
Biblioteca Caminhos da Leitura (São Paulo)
Em São Paulo, na região de Parelheiros, o diálogo é estimulado por meio da leitura. A biblioteca empresta livros gratuitamente para moradores da comunidade. O espaço promove atividades para trabalhar os moradores antes que a violência ocorra. O projeto também inclui mediação de leitura em escolas e leitura para gestantes.
Orquestra Maré do Amanhã (Rio de Janeiro)
Criada em 2010, a orquestra está localizada no complexo de favelas da Maré, região conflagrada e que divide duas facções criminosas. As crianças ensaiam em um contêiner instalado nos fundos de uma escola. O projeto conta com 30 jovens na orquestra e atende outras 20 crianças com iniciação musical. Por meio da música, os participantes desenvolvem o foco, a concentração e a autoestima.