Fifty-fourrrr!", ouviu, em um idioma que ainda não domina, Dandara Amorim Veiga, 19 anos, de Alegrete, ao ser chamada entre os mais de cem aspirantes a bailarinos profissionais de diferentes continentes que aguardavam pela audição na Alvin Ailey American Dance Theater, em Nova York (EUA), escola de dança contemporânea consagrada mundialmente. Apenas 10 seriam selecionados.
Depois daqueles 60 minutos de avaliação, realizada em 17 de julho deste ano, Dandara queria deixar o número 54 para trás e ser chamada pelo próprio nome. Bastava provar aos professores da escola que a paixão guardada em segredo na infância é o que a move nos trilhos da vida.
Do lado de fora da sala, ficaram as pernas trêmulas da noite anterior à aula especial de balé, a saudade da família em Alegrete e as dificuldades enfrentadas ao longo de uma década. Dançando, Dandara dominou os próprios medos. E, ao ouvir os primeiros acordes para uma coreografia de balé moderno, esqueceu que era observada pela equipe. Nem contou quantos professores a avaliaram naquele momento ou gravou na memória os nomes das músicas dançadas para eles.
Nas três semanas seguintes, Dandara se dedicou à conclusão do curso de verão da companhia, no qual conseguiu se inscrever depois de reunir as economias dos prêmios conquistados em concursos de dança no Brasil e no Exterior. O resultado da seleção veio por e-mail, cinco dias antes do fim do curso: o número 54 fazia parte do passado, ela havia sido aprovada para uma das mais disputadas bolsas de estudos oferecidas a jovens bailarinos. A partir de 4 de setembro, pelos próximos 12 meses, Dandara fará parte da escola de dança da Alvin Ailey, companhia fundada em 1958, em meio à luta dos negros por direitos civis.
A gaúcha tem a chance de, após o período de estudos, permanecer na equipe, como profissional.
– Não sei explicar, não achava que passaria. Aproveitei muito o momento. Fiz o máximo para me sentir especial, não fiquei pensando em chamar a atenção – recorda Dandara, de volta a Alegrete para se despedir da família.
No pouco tempo para demonstrar as lições aprendidas durante seis anos, Dandara conseguiu deixar marcas. O haitiano Jean Emile, bailarino, coreógrafo e professor da Alvin Ailey, diz que ela é especial. Foi ele quem, ao vê-la numa competição na Itália, a convidou para o curso de verão em Nova York.
– É daqueles talentos únicos. Há uma brasilidade inerente nela, que pode ser resumida na perseverança característica do brasileiro quando encontra a sua paixão. Mas o talento dela não para por aí. É quase como se ela tivesse nascido para dançar – afirma Emile, em entrevista por telefone.
– É um privilégio para nós, brasileiros e gaúchos, ter uma representante da nossa dança numa companhia deste porte – diz a coreógrafa Jussara Miranda, diretora da Muovere Cia. de Dança Contemporânea, de Porto Alegre.
A trajetória da adolescente poderia ser como a de outros bailarinos que buscam um espaço em grandes companhias espalhadas pelo mundo. Mas talvez seu caminho tenha sido mais tortuoso até alcançar o objetivo traçado cinco anos antes, quando Dandara conheceu por acaso o trabalho da companhia norte-americana e prometeu para si que, um dia, faria parte dela:
– Nas apresentações e competições, me incomodava muito ser a única bailarina negra. Pesquisei sobre o tema e encontrei a Alvin Ailey. Então, pensei: é lá que quero dançar.
Descoberta tardia na apresentação de fim de ano de um projeto social
Dandara nasceu na periferia de Alegrete e tem três irmãos. Desde os seis anos, quando os pais se separaram, divide-se entre a casa da mãe, a camareira Liliane Rios de Amorim, 42 anos, onde moram também os dois irmãos mais novos, João Antônio, 14 anos, e Jorge Miguel, 17, e a da avó paterna, a doméstica Maria Luiza Lima de Moraes, 70 anos. A irmã mais velha, Janaína, 25, vive no Rio.
Dos nove aos 13 anos, Dandara integrou o projeto social e recreativo de balé Primeiros Passos, criado pela professora Jacqueline Zacarias Silveira para crianças carentes das escolas públicas de Alegrete. E foi numa apresentação de final de ano dos alunos que ela acabou sendo descoberta pela própria Jacqueline. A garota esguia tinha 13 anos – e, dançando, "lembrava uma pluma", compara a professora.
A maior parte das bailarinas profissionais costuma iniciar os estudos ainda antes de ingressar no Ensino Fundamental. Para os padrões exigidos pelo balé, Dandara estava começando tarde. Desconhecendo o histórico de dificuldades financeiras da família da menina, a professora a chamou para ser aluna na Escola de Dança Ballerina, fundada por ela na cidade em 1984. Jacqueline queria lapidar aquele diamante.
No primeiro ano na instituição, a adolescente contou com a ajuda de Maria Luiza, que trabalhou mais horas na limpeza para pagar a mensalidade e os uniformes. Quando Dandara temeu abandonar o sonho por não ter mais dinheiro, ela e a avó passaram a costurar os figurinos das apresentações da escola. Para ganhar as fotos anuais dos espetáculos, Dandara ajudava na produção das imagens das colegas – fazia a maquiagem e os coques das alunas.
– Ela era tímida e quieta. Com a dança, se desenvolveu muito. Sempre estive do lado dela, costurando os figurinos e a levando na escola. Nunca deixei de comparecer aos espetáculos, pois minha neta começou a dançar em todos eles – relata a avó, orgulhosa.
Seis anos depois, a neta de Maria Luiza serve de exemplo para as 200 alunas da Ballerina e, principalmente, às 350 crianças hoje atendidas no projeto social do qual fez parte.
– Qualquer música, qualquer movimento no corpo da Dandara tem um significado. Ela transmite uma emoção para quem a está assistindo. Através do corpo de Dandara, a gente consegue viver a dança que ela tanto ama – descreve Jacqueline, ressaltando que o público costuma se emocionar ao acompanhar o flutuar das sapatilhas da bailarina, enquanto ela se apresenta como a dançarina apaixonada Nikiya, em La Bayadere.
O talento da adolescente foi percebido também por um dos mais conceituados bailarinos da América do Sul, em 2014, durante o festival Bento em Dança. Impressionado com a menina que unia suavidade e força na mesma intensidade, o argentino Raúl Candal, que durante 20 anos foi o primeiro bailarino do Teatro Colón de Buenos Aires, a avaliou na época:
– Compensa com a alma o que não construiu quando criança. A coisa mais fácil do mundo é montar uma coreografia para ela.
Avó deu todo o apoio, mas exigiu o ingresso na universidade
A estreia da guria de Alegrete nos palcos ocorreu antes mesmo de aprender a caminhar. Quem recorda é a avó Maria Luiza. Aos 10 meses de idade, nos braços de uma bailarina, Dandara fez parte de uma coreografia afro no Dança Alegre, evento promovido pela prefeitura que reunia centenas de dançarinos do Brasil e do mundo para apresentações dos mais diferentes ritmos.
– Choro cada vez que ela dança bolero. Lembro da primeira vez que a vi no palco, ainda bebê.
A música de abertura do Dança Alegre era um bolero – relembra Maria Luiza.
Nascida numa família de pais capoeiristas e professores da técnica, Dandara no colo já gingava nas rodas comandadas por ambos. Mesmo cultivando desde a infância o desejo de se tornar uma bailarina, a menina era incentivada a seguir a carreira dos pais. Acabou ganhando alongamento e força ao praticar capoeira todos os dias.
– Desde criança, olhava filmes de dança e ficava encantada. Mas era uma menina muito envergonhada, com medo de tudo. Guardava aqui dentro (aponta para o coração) o sonho de, pelo menos, entrar numa sala de balé – confidencia.
A separação dos pais pareceu que a afastaria de vez do maior desejo. O pai se mudou para outro Estado e nunca mais contatou os filhos ou a própria mãe. Para sustentar as crianças, Liliane se mudou para uma casa menor, num bairro distante mais de 10 quilômetros do centro da cidade, e passou a trabalhar em até dois empregos por dia. A ajuda e a força para ultrapassarem o período difícil vieram da avó paterna. Mas foi a irmã mais velha de Dandara, Janaína, 25 anos, hoje dona de casa no Rio de Janeiro, que, ao saber do sonho da irmã, a inscreveu no projeto social. As aulas eram gratuitas, uma vez por semana, e ela ainda receberia a malha e a sapatilha. Como treino, se alongava na cama, na janela de casa e no caminho para a aula. Ações que repete até hoje.
E, mesmo escondendo a tristeza de não ter o pai por perto ou de passar os dias esperando pela mãe, que trabalhava muitas horas, a pequena jamais parou de dançar. Pelo contrário, quando não tinha o dinheiro das passagens de ônibus até a escola, caminhava os 10 quilômetros diários. Para não ver a filha sofrer ainda mais, a mãe sugeriu que ela fosse viver na casa de amigos da família, vizinhos da escola de balé. A menina ficou três meses, até se mudar para a casa da avó, a menos de cinco quilômetros da Ballerina.
– Às vezes, a gente não tem o dinheiro, como é o caso da Dandara. Mas tudo é compensado com a determinação, a coragem, a força e aquele sonho que ela sempre correu atrás – emociona-se Liliane.
É a avó, em lágrimas, que especula de onde vem a força da menina franzina:
– A vida dela é a dança. Via a Dandara no palco dançando, mas sempre sozinha. Ela nunca teve uma família unida para assisti-la ou ajudá-la antes dos espetáculos, como as outras meninas. A mãe sempre trabalhou muito, e o pai foi embora. Então, choro quando a vejo dançando porque acho que a família deveria ter acompanhado mais. A trajetória dela é assim: ela está sempre só, mas de cabeça erguida e ajudando as colegas no que for preciso.
Mesmo sabendo que a neta queria apenas seguir no palco, Maria Luiza exigiu que ela concluísse o Ensino Médio e chegasse à universidade. Seguindo o pedido da avó, passou nas provas do Enem e ingressou em 2015 no curso de Educação Física, na Urcamp.
– De manhã, ajudava a minha professora. Depois, dava aula no Primeiros Passos. Em seguida, lecionava num projeto da faculdade. E ainda fazia aula de balé todos os dias. No que restava de tempo livre, ficava ensaiando – relembra Dandara.
Coleção de medalhas conquistadas na Itália, em Portugal e nos EUa
Como bailarina, Dandara, que recebeu este nome em homenagem à mulher guerreira que lutou ao lado do marido, Zumbi dos Palmares, passou a colecionar medalhas nas competições disputadas. Entre 2011 e 2015, ela somou 25 premiações entre apresentações solo e em grupo no Bento em Dança, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Das histórias que guarda do maior festival de dança do Estado, uma deixou marcas reais na menina. Foi em 2012, quando se apresentou com uma agulha cravada no pé.
– Pegava sapatilhas velhas das colegas e as reformava para usá-las. Naquele dia, estava costurando a minha quando mudaram a ordem do espetáculo e me obrigaram a entrar. Como não tinha concluído a costura, dancei um repertório neoclássico com a agulha enfiada por completo no pé. Estava tão focada que esqueci a dor. Tirei terceiro lugar – recorda, aos risos.
Bento Gonçalves também lhe deu a chance de encaixar os rumos da vida mais uma vez. Em 2014, a italiana Claudia Zaccari, primeira bailarina do teatro de Roma e professora de balé, se encantou com a habilidade de Dandara.
– Enquanto lecionava dança clássica aos estagiários presentes, meus olhos não saíam da menina bonita, com corpo atlético e muitas flores no cabelo. Seus movimentos me fixaram. Mas foi só no ano seguinte que a conheci e soube do desejo de se tornar profissional – conta Claudia, em entrevista via Facebook.
Desconhecendo a situação financeira da menina, Claudia a convidou para participar do DanzaFirenze, uma competição anual de dança em Florença, na Itália. Em Alegrete, uma grande corrente se formou entre os moradores para pagar as despesas da viagem. Na Ballerina, foram feitos brechós e rifas que ajudaram na arrecadação do dinheiro.
Como retribuição, Dandara conquistou o primeiro lugar na competição disputada com dançarinos do mundo todo. Lá, Claudia diz, professores renomados, como Andréa Baker, Guy Le Bock, Rosanna Brocanello e o próprio Jean Emile, se empolgaram.
– Existem muitos dançarinos bons em técnica. Mas são poucos os que tocam profundamente na alma. Dandara é um deles – garante Claudia.
Mais confiante no próprio potencial, e com o dinheiro do prêmio da Itália, a guria de Alegrete viajou em janeiro deste ano para Montana, nos Estados Unidos, onde tirou o primeiro lugar numa competição internacional que lhe deu prêmio em dinheiro e uma bolsa de estudos de quatro meses na escola de dança da cubana Anarella Sanchez, em Leiria, Portugal. Nem voltou para casa. Ao desembarcar em São Paulo, pensando que voltaria para Alegrete, soube que Claudia pagaria as despesas dela em terras portuguesas.
– Acredito que a gente precisa ajudar a desabrochar talentos e fazer emergir as novas gerações de artistas. Estou feliz por contribuir para o nascimento de uma estrela – afirma a italiana.
Nos primeiros sete meses deste ano, vividos fora do Brasil, Dandara fez aulas de balé clássico e contemporâneo das 9h às 21h. Dedicou-se tanto que precisou diminuir de 900 para 450 os abdominais diários. Estava ganhando músculos demais.
– Foi algo bem forte, mas que precisava para amadurecer e conhecer mais o meu corpo – explica.
Em Portugal, a gaúcha conquistou outras 10 medalhas na Dance World Cup Portugal e na Leiria Dance Competition. Com o dinheiro, se inscreveu no curso de verão da Alvin Ailey e só voltou ao Brasil em agosto. Agora, se prepara para viver nos Estados Unidos. A chefe da mãe de Dandara se ofereceu para dar aulas gratuitas de inglês à menina.
Em Nova York, ela dividirá um apartamento com outros aspirantes a bailarinos profissionais. Já há um movimento em Alegrete e na própria Alvin Ailey para arrecadar fundos que a ajudem a se manter em terras estrangeiras no período.
– Fico impressionada porque este é o meu sexto ano de balé – comenta a gaúcha. – O meu maior sonho é poder afirmar que sou uma bailarina profissional e que vivo da coisa que mais amo. Ainda estou estudando e correndo atrás de uma oportunidade de trabalho. Mas é impossível não me sentir uma vencedora. Por este pouco tempo, consegui conquistar tantas coisas que, às vezes, muitos bailarinos não conseguem. Tenho que acreditar. Se eu não fizer isso, não tem como alguém acreditar em mim.
Aos 12 anos, Dandara rabiscou numa folha de papel uma menina segurando balões em meio a uma estrada e escreveu a mensagem que carregaria como lema para a vida: "Sonhos não têm pernas, mas você tem. Corra atrás deles!". Dandara não corre. Ela dança em direção a eles.