Ele já escreveu muito sobre adolescentes e drogas. Nos últimos anos, também falou sobre a própria história e sobre o amor. A inspiração vem dos 45 anos em que atua como psiquiatra, a maioria deles em Florianópolis. Francisco Baptista Neto, 70 anos, lança hoje sua primeira obra de ficção, A mula sem cabeça, uma novela psicoerótica - como ele mesmo define.
Em entrevista ao Diário Catarinense, no consultório onde atende na Capital, o médico fala sobre o livro, as mudanças no perfil dos adolescentes e o que pode estar por trás da dificuldade dos pais de lidarem com os filhos nessa faixa etária. Neto foi um dos primeiros estudiosos sobre adolescência no país e é autor de livros como O Adolescente de Santa Catarina - Uma Experiência Institucional e Aprendendo a Conviver com Adolescentes. O psiquiatra também aborda o que leva as pessoas a irem a um consultório atualmente e afirma que "um bom amigo pode ser terapêutico, funciona tão bem quanto um psiquiatra". Confira:
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Como surgiu a ideia deste livro?
Evidente que são vários personagens em um personagem. E muitos desses personagens ou eu ouvi ou ouvi dizer. Mas é ficção. E a ideia surgiu porque eu sempre escrevi livros técnicos e surgiu a ideia de fazer um livro de ficção e como eu vim do Nordeste, eu pensei num livro que fosse baseado numa lenda do Nordeste, a mula sem cabeça. E eu construí o enredo da novela em cima disso.
O personagem tenta lutar contra a sua essência, não?
A moral do livro é mostrar como o inconsciente é capaz de detectar o que acontece com a pessoa antes de ela ter uma percepção consciente. E de que as pessoas, de alguma forma, são regidas por uma entidade que é o inconsciente, que se forma a partir das vivências que ela tem ao longo da vida. O que o livro demonstra é exatamente isso, como o inconsciente está por trás de tudo, como ele vai interferindo na maneira de agir.
E como a pessoa deve trabalhar esse inconsciente?
A depender da história da pessoa, o inconsciente ajuda ou atrapalha. Quando o inconsciente está atrapalhando, tem que conhecer esse inconsciente e ver de que forma podemos modificar. No livro, é como se o personagem tivesse um script. Se você conhece as motivações do seu script, você é capaz de modificá-lo, o que não ocorreu com o personagem. Ele cumpriu o script dele.
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O senhor sempre trabalhou com adolescentes. Percebe uma mudança de perfil nesta faixa etária?
Fui um dos pioneiros dos estudos da adolescência aqui no Brasil. Durante muitos anos esse foi o tema central do meu trabalho e das minhas pesquisas. Eu vim para Florianópolis em 1978, no ano seguinte eu já estava fazendo uma pesquisa sobre o perfil do adolescente. Neste ano, quando estávamos em plena ditadura, eu perguntei aos jovens quantos estavam insatisfeitos com o regime: 82% responderam que sim. Então perguntei quantos participavam de algum tipo de atividade política: 12% efetivamente tinham algum tipo de participação. Em 1989, 10 anos depois, eu fiz a mesma pesquisa, entre o 1º e 2º turno entre [Fernando] Collor e Lula [ Luis Inácio Lula da Silva], em plena efervescência política e democracia, e, mais uma vez, exatamente 12% participavam efetivamente da política. Então independentemente do regime, exatamente 12% têm participação. Essas grandes transformações ocorridas na história que a gente atribui aos jovens, na verdade, foram feitas pela minoria dos jovens, que faz barulho, que é ativa. Mas a maioria dos jovens é acomodada e isso permanece até hoje.
Há uma maneira de reverter isso?
Não, a vida inteira foi assim. É uma tendência mundial. Sempre é uma minoria atuante que é barulhenta, mas a maioria é acomodada, como é com a população em geral.
Os pais têm dificuldade em lidar com esses jovens?
O que nós precisamos entender é que todos são seres humanos e como já dizia Nelson Rodrigues: "o ser humano é capaz de tudo, até de uma boa ação" (risos). Uma regra básica: pais que viveram uma boa adolescência, com certa tranquilidade, lidam bem com seus filhos adolescentes. Pais que tiveram adolescência conturbada vão ter dificuldades com filho adolescente. Isso é uma regra básica.
A saída para essas dificuldades seria terapia familiar?
Depende. Geralmente quando os pais trazem os filhos para tratamento, quem necessita algum atendimento são os pais. É muito raro o próprio adolescente pedir, mas quando ele pede, a dificuldade é dele. Você pode dividir os adolescentes em três grupos: o contestador, que vai enfrentar o status quo, que eventualmente usa drogas, mas não de forma abusiva; tem os que vão seguir exatamente o caminho traçado pelos adultos, eles são os adolescentes acomodados e que ficam na zona de conforto; e os rebeldes, que são falsos rebeldes, que vão fazer uso de drogas ou entrar na loucura porque não vão conseguir contestar, aparentemente eles estão contestando mas não ameaçam o status quo, pelo estado vulnerável em que se colocam. São esses três tipos que a gente encontra normalmente, os que vêm ao consultório são os contestadores e os falsos rebeldes.
O que leva as pessoas a procurarem um psiquiatra atualmente?
Em relação aos filhos, principalmente o uso e o abuso do álcool entre os adolescentes, os pais não sabem lidar com isso. Essa é a preocupação mais comum hoje no consultório. O álcool se expandiu de tal forma e entrou tanto na vida das pessoas, principalmente dos jovens, que virou um fenômeno cultural. Você vê jovens fazendo esquenta com destilados e, por outro lado, pais fazendo aniversário de 14, 15 anos com bebida alcoólica. Então por isso que digo que é um fenômeno cultural e os próprios pais são cúmplices disso. Outro é a questão financeira, a queda do padrão. Famílias que tinham a missão de ascender socialmente e agora lutam pela sobrevivência. O padrão das famílias está muito prejudicado, você vê muitos chefes de família angustiados e que vêm aos consultórios.
As pessoas estão mais abertas para buscar tratamento psiquiátrico ou psicológico hoje?
Há uma diferença. Antes eles tinham como pagar um tratamento psiquiátrico, hoje eles não têm. Quando eu iniciei, os pacientes tinham tratamento três vezes por semana, depois reduziu para dois e atualmente um número significativo só quer fazer de 15 em 15 dias, quando tecnicamente prejudica muito o trabalho terapêutico. Quando você pensa em uma vez por semana já é um trabalho capenga. Nós estamos vivendo um momento de crise. Eu acho que um bom amigo pode ser terapêutico, funciona tão bem quanto um psiquiatra, os passes espíritas, o pai de santo, um bom padre podem ser bons terapeutas. Então a população tem para onde recorrer para amenizar as angústias e não precisa necessariamente ser um profissional, e isso é a salvação.
Serviço
Lançamento livro A mula sem cabeça
Quando: nesta quinta-feira, 7 de julho
Horário: 19h30min
Local: Centro Integrado de Cultura / CIC
Preço da obra: R$ 40