Não se pode mais sair sozinho à noite em segurança. Não se pode mais tirar dinheiro do banco e carregá-lo na carteira. Não se pode mais deixar o carro estacionado em local aberto sem alarme. Não se pode mais permitir que as crianças brinquem na rua sem medo de que algo aconteça.
O medo da violência é uma realidade que tem mudado vidas. O temor de ser assaltado, sequestrado ou agredido se tornou uma marca nas grandes cidades – ainda que nem nas menores haja paz. Na falta de atuação do poder público, as pessoas acabam se acostumando a buscar a proteção como for possível: evitando lugares vazios, guardando pertences com cadeados, vivendo vigiadas por câmeras, rodeadas de muros, entre grades.
– Infelizmente, não há como negar que a sensação coletiva de medo tem bases concretas hoje em dia. Ela não é fruto de uma ficção. A criminalidade cotidiana assusta – explica a socióloga Letícia Maria Schabbach, integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Quem está crescendo sob o espectro da violência, ainda que nunca tenha sido vítima de algum ataque, acaba tendo de se adaptar a uma vida em que tudo o que não está sob o próprio controle ou dos familiares mais próximos pode ser temido. Não sem razão.
– Desde as eras antigas o ser humano vive em estado de medo. A grande questão é que, na modernidade, o medo se tornou totalitário. A perpetuação desse estado de medo, quando se considera que nada é digno de confiança, que o mal está espalhado por toda parte e que as ameaças estão nos espreitando mesmo nas situações mais sutis, é preocupante – acredita o doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Renato Nunes Bittencourt.
Mãe de uma criança de oito anos, a secretária Lisiane Moura passou por uma experiência traumática em 2013, quando o local onde trabalha foi alvo de um assalto a mão armada. Ela estava na recepção, a primeira a ser vista pelo criminoso. Tornou-se a principal vítima. Com a arma apontada para a cabeça, foi obrigada a mostrar onde havia dinheiro, computadores, bens valiosos. Nada pôde fazer para impedir a ação.
– Depois de uma semana, comecei a entrar em pânico. Não queria mais ir trabalhar, reviver aquilo. Me sentia responsável. Desconfiava de tudo, de todos – conta.
Cerca de seis meses de uso de remédios e terapia foram necessários para superar o trauma. Mas marcas profundas foram deixadas em sua mente, refletidas também na forma como tem criado o filho: antes inatingida pela violência, Lisiane passou a temer pela própria vida e a dos familiares mesmo em casa ou no trabalho. Receosa dos possíveis efeitos da notícia, preferiu não contar para a criança, então com cinco anos, que havia sido ameaçada.
Busca por proteção evidencia insegurança
Conviver sob constante medo tornou-se padrão – uma adaptação necessária para preservar a vida diante da escalada da violência. Passou a ser comum ter que trancar portas e janelas, optar por locais movimentados, andar sem carregar objetos que possam motivar um assalto. Não é assim que deveria ser, mas tamanhas precauções são hoje tão "normais" que sequer parecem um ponto fora da curva no comportamento humano.
Conhecido por estudar a inconstância das relações sociais, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman definiu em sua obra Confiança e medo na cidade que as metrópoles do nosso tempo tornaram-se espaço de medo e insegurança. Condomínios fechados, grades, muros fazem a população fugir da intenção principal de uma aglomeração urbana: a própria convivência. A ideia pode ser resumida na frase "você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela".
É nessa tentativa de fugir da insegurança que as crianças têm sido criadas em um estado de eterna vigilância. Psicólogos e psiquiatras explicam que a constante preocupação com a sobrevivência, evidenciada pelo medo, não é peculiar à atualidade, mas há pelo menos uma característica que diferencia a sociedade contemporânea de outras: esse sentimento está sempre presente, já condicionado em hábitos destinados a proteger os pequenos e evitar a exposição ao perigo.
– Buscamos proteções para nos sentirmos mais seguros, para vivermos com mais qualidade de vida. O risco, porém, é que elas tenham um efeito oposto, de nos enjaular, contribuindo para o próprio aumento do medo – pondera Denise Regina Quaresma da Silva, professora de Psicologia na Universidade Feevale.
Famílias têm medo de se expor
Com medo de serem identificadas, diversas famílias contatadas pela reportagem optaram por não terem imagens suas e dos locais onde moram divulgadas. Temem ser reconhecidos, mostrar os filhos, abrir margem para assaltos. Tamanha é a preocupação com a segurança que qualquer possível brecha, para elas, torna-se um problema.
Mãe de uma criança de um ano e cinco meses, uma jovem de Porto Alegre relata que passou a temer ainda mais pela segurança da família quando foi vítima de um assalto a banco. Passando por terapia, ela prefere não comentar o caso com pessoas de fora de seu convívio social, mas conta que teve sua rotina alterada na tentativa de se expor menos à violência.
– Passei a ter muito mais cautela, principalmente por causa do meu filho. Hoje em dia, não temos mais certeza, ao sairmos de casa, se poderemos voltar em segurança. Estou muito mais cautelosa, e penso em como será para ele crescer em um mundo assim – diz a bancária, que prefere não ser identificada.
Mesmo "indireta", violência pode deixar marcas na infância
As crianças, por vezes, nem percebem como seus pais ou responsáveis preocupam-se com a segurança. As orientações de não aceitar a ajuda de estranhos, evitar comentar sobre a rotina de casa e ficar sempre de olho nos pertences são alguns exemplos de como a insegurança tem afetado os hábitos de cada um, mesmo quando a família não tenha sido vítima de algum tipo de atentado. E tanta preocupação, apesar de necessária, pode afetar os pequenos.
– A exposição ao medo durante o desenvolvimento, especialmente na infância, pode ter consequências de longo prazo na vida das pessoas – afirma o psiquiatra Rodrigo Grassi de Oliveira, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (Nepte), na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Como possíveis efeitos, a psicóloga clínica Elisa Steinhorst Damasceno aponta uma maior propensão a doenças decorrentes do estresse e da ansiedade, por exemplo, além do desenvolvimento de transtornos psíquicos. Mas a principal consequência, segundo ela, seria a criação de uma geração mais temerosa, menos disposta a tomar riscos, menos aberta ao convívio com pessoas e em locais diferentes – uma geração confinada.
– Penso que uma das consequências do medo é uma atitude conservadora em relação à sociedade em geral e à mudança. Nos tornamos medrosos, intimidados, por causa do medo – completa Ben Highmore, professor do centro de estudos culturais na Universidade de Sussex, no Reino Unido, que tem como principal linha de pesquisa a relação entre medo e segurança.
Há também quem cogite que conviver com a insegurança pode ser um processo adaptativo. Se, nos primórdios, a humanidade escolhia entre lutar ou correr quando diante de um predador, pode ser que a violência seja hoje esse predador. O risco talvez esteja em não ter mais escolha além de se esconder.
Fonte: Elisa Steinhorst Damasceno, da Wainer Psicologia Cognitiva