O padre Hilário Dewes foi uma das estrelas de um evento que, entre os dias 11 e 13 de março, mostrou a força conquistada pelo segmento. Realizado no Centro de Eventos do Hotel Plaza São Rafael , o 10º Encontro Holístico – Conferência de Saúde, Ciência e Espiritualidade reuniu 4,4 mil pessoas. O idealizador foi o deputado federal Giovani Cherini (PR-RS), ele próprio um terapeuta holístico.
No auditório principal, a decoração incluía enormes retratos de figuras de conotação mística, identificados como Jesus, o Cristo, Arcangelina Maria, Saint Germain e El Morya. No primeiro andar, achava-se a terapeuta Anna Wertheimer, que trabalha com um amplo arsenal (reiki, cura magnificada, cura com luz, cura quântica egípcia, cura eletrônica), mas se destacou mesmo por causa de um tubo de PVC. Ela soprava o tubo, inspirado no instrumento aborígene australiano didgeridoo, tendo sempre um voluntário na outra extremidade.
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– O objetivo é fazer uma limpeza energética. Quando as pessoas desencarnam, nem todas vão para um lugar de amor e paz. Alguns seres espirituais encostam na gente. É preciso fazer um trabalho direcionado a eles – explicou Anna.
Logo ao lado, sob uma tenda, Rosa Conrad Heck oferecia um procedimento chamado de cone chinês, que consiste em espetar um cilindro de resina na orelha do indivíduo e pôr fogo nele. A prática é bastante usual para quem quer desobstruir o ouvido, mas a terapeuta vai além dos efeitos físicos. Garante que o cone faz também a sucção das coisas ruins que uma pessoa ouviu durante a vida:
– O que polui o espírito são as palavras que são ditas.
Enquanto conversava, Rosa aplicou o cone no ouvido do musicoterapeuta Aley Shanti, estendido em uma maca. Durante o processo, assegurou ser capaz de ler no fogo detalhes da vida do paciente. Para demonstrar, ofereceu um diagnóstico de Shanti:
– Ele está com bloqueio de dogmas, uma coisa que acontece com pessoas que foram criadas acreditando que só um princípio religioso é verdadeiro.
Shanti concordou. Levantando-se da cama, contou que teve uma formação religiosa muito rígida. Segundo ele, o cone chinês parecia ter ajudado.
– A sensação é de liberação – descreveu.
A mostra tinha dezenas de expositores, mas nenhum parecia fazer tanto sucesso quanto a dupla que vendia, por R$ 95, o que anunciava ser "yoga para os olhos", na forma de uns óculos "de exercício e relaxamento". Uma multidão se acotovelava diante da banca. Os óculos eram parte de uma linha mais ampla, chamada de Kit Cerebral Completo (composto por pulseira antienjoo, adesivo protetor de celular, bola energética e mais uma série de outros itens). O custo total alcançava os R$ 820, em quatro vezes, mas o pagamento à vista reduzia o desembolso para R$ 697. A banca aceitava cartões de crédito.
Um andar acima da mostra, ocorriam as palestras, como Psicoterapia Reencarnacionista e Psicologia do Encantamento e Mitologia Pessoal – porque toda alma nasce constelada. Mas muitos preferiam tomar o elevador até o 5º ou o 6º andar do prédio, para degustações gratuitas das mais variadas terapias. Filas se formavam diante das portas. Em uma das salas, Dinha Guerra aplicava o que chama de reiki sonoro. O primeiro passo consistia em fazer um diagnóstico, pela deposição de cristais na mão do indivíduo. Em seguida, a pessoa era vendada e recebia um fone de ouvido, pelo qual escutava uma gravação em que cada faixa correspondia a uma cor – o aspecto cromoterápico do processo. Ao mesmo tempo, um terapeuta aproximava as mãos do rosto do paciente, o que seria o reiki propriamente dito.
Bem ao lado, estava o terapeuta Marcelo Stoduto, que propagandeia a realização de "desmanche de magia negra" e atua com psicoterapia transpessoal, cristalometria e cromoterapia.
– Uso a imposição das mãos. Os pulsos que irradiam da mão entram em ressonância com a aura da pessoa, e aí acessamos os chakras com somatização – disse Stoduto.
Também ali por perto era possível encontrar Leonardo de Albuquerque, praticante de ufologia paracientífica e medicina holoenergética naturalista. Ele parecia um caricaturista em pleno exercício das funções. Sentado a uma mesa, desenhava uma mulher em uma cadeira a sua frente, Cheresad Souza, que viera de Brasília para participar do evento. Na verdade, o que Leonardo estava fazendo era uma pintura energética da alma de Cheresad. Ele dizia ler a aura, graças a poderes mediúnicos e extrassensoriais, transpondo-a para o papel.
– Tu foste uma sacerdotisa em outra encarnação. Tu estás retomando isso nesta vida. Teus chakras estão bem equilibrados – diagnosticou.
– Fantástico! – regiu Cheresad.
Entre outras modalidades, havia mesa lira (uma grande caixa sonora, com 42 cordas afinadas, cujo som faz "as células entrarem em ressonância, propagando um estado de saúde por todo o organismo") e cosmética vibracional (uma coleção de cremes, xampus, condicionadores, sabonetes e desodorantes, incluindo uma loção corporal que "estimula o amor incondicional através das vibrações amorosas irradiadas pela Grande Mãe Manjerona"). Confrontado com uma lista dessas práticas, Gilberto Schwartsmann, vice-presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina, membro da Academia Nacional de Medicina e um dos principais pesquisadores de câncer no país, não conteve o riso. Depois, produziu uma resposta ponderada:
– No meio acadêmico e científico, não reconhecemos essas formas de tratamento como válidas. Não há nenhuma evidência de que funcionem. Isso não quer dizer que uma pessoa não possa achar que se sentiu melhor, mas não existe comprovação científica. A espiritualidade e a religiosidade podem ajudar certas pessoas a tolerar frustrações do tratamento, podem ser um fator tranquilizador, mas uma coisa diferente é recorrer a isso como forma de cura. Tudo tem limites.
O Encontro Holístico também chamou a atenção por contar com o apoio institucional da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, uma das mais tradicionais instituições médicas do país, e por ter premiado um reconhecido profissional do complexo hospitalar, o cirurgião cardiovascular Fernando Lucchese, diretor médico do Hospital São Francisco. Lucchese, que organizou um simpósio e proferiu uma palestra, recebeu o prêmio Kokhmahá, destinado "a entidades, veículos e pessoas que se destacam na aplicação de terapias alternativas".
Nos últimos tempos, o cirurgião vem realizando seminários sobre a relação entre crenças religiosas e saúde, tendo trazido a Porto Alegre o controverso médico americano Harold Koenig. Autor de livros como A cura espiritual da doença crônica e A oração como apoio na doença, Koenig afirmou em entrevista a ZH que a cura através da religiosidade pode ocorrer por intervenção direta de Deus e defendeu a ideia de que, em alguns casos, pacientes de depressão estarão bem servidos se procurarem um padre, em vez de um psiquiatra.
O presidente do Cremers, Rogério Wolf de Aguiar, definiu o apoio da Santa Casa como "lamentável". Schwartsmann também manifestou reservas:
– Tem de perguntar para as lideranças médicas da Santa Casa. Às vezes, é um evento que nem passa pelos órgãos médicos todos, porque é uma instituição tão grande.
Na ocasião, a assessoria de comunicação da Santa Casa indicou, para falar sobre o tema, o cardiologista Mauro Pontes, diretor da unidade de pesquisa do Hospital São Francisco e um dos profissionais que palestraram no Encontro Holístico. Pontes afirmou que o São Francisco mantém há anos um centro de pesquisa na área de espiritualidade e saúde. Ele disse não saber em que consistiu o apoio da Santa Casa:
– O nosso evento foi um simpósio de espiritualidade e saúde da Santa Casa, que não teve nenhuma relação com essas práticas alternativas, que nós não endossamos. Eu não estava nem sabendo dessas outras práticas. A nossa atuação foi exclusivamente como palestrantes.
ZH também pediu a posição da Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs). A pessoa indicada para falar foi o diretor de integração, o oftalmologista, homeopata e hipneatra Bernardo Aguiar.
– Hipneatra é um médico que estuda neurologia, psicologia, psiquiatria e depois faz um curso. Ele hipnotiza o ser humano e depois ele ressignifica o inconsciente – explicou.
Também advogado, o porta-voz indicado pela Amrigs costuma proferir uma palestra intitulada Responsabilidade Civil, Mental e Ética do Médico. Nessas ocasiões, diz aos colegas que eles podem aplicar qualquer terapia, desde que estejam dentro das diretrizes da Associação Médica Brasileira. Não quer dizer que duvide que práticas sem reconhecimento não possam funcionar:
– Quando uma criancinha se machuca, a mãe vai lá e diz, com a mão em cima do machucadinho: "Ora, filhinho, não foi nada". Essa mão passou certamente o calor da mãe, a vontade, o psiquismo. O endereçamento da vontade daquela pessoa foi por aquela mão. E é tão verdadeiro, que a criança parece que alivia o sofrimento. E a mãe só botou a mão, não deu remédio.
Outro hospital que se associou ao evento foi o Divina Providência, que, em seu ambulatório, dispõe de homeopatia, fitoterapia, florais, cromoterapia, reiki e acupuntura. O diretor técnico do hospital, Fernando Fernandes, disse que essas terapias não são oferecidas dentro do hospital e reconheceu que a participação no Encontro Holístico pode gerar repercussões negativas:
– O Divina nunca foi para esse lado de tarô, dessas curas sem comprovação. O que o hospital oferece nessa unidade são coisas reconhecidas na medicina como tratamento adjuntivo, não como principal.
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