O ano de 1984 começou com uma notícia alarmante: "A síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) chegou ao Rio Grande do Sul", informou Zero Hora em 3 de janeiro. Descrita pela primeira vez em 1981, nos Estados Unidos, onde acometia principalmente homens gays, a aids vinha se alastrando pelo mundo e intrigando a comunidade médica. Com o sistema imunológico debilitado, os doentes sofriam com infecções oportunistas e, em poucos meses, pioravam até a morte. A identidade do gaúcho internado no Sanatório Partenon não foi divulgada – até mesmo o nome do hospital era mantido em sigilo. Tratava-se de um caminhoneiro de 41 anos, casado e com filhos, que havia apresentado os primeiros sintomas em meados do ano anterior. Infectara-se, provavelmente, em uma relação sexual com outro homem durante uma viagem a São Paulo, onde despontaram os primeiros casos brasileiros. "Não existe cura conhecida e a medicina ainda não conseguiu definir com clareza as causas da doença", acrescentava a reportagem. Assim começava, oficialmente, no Estado, o combate à epidemia que em 2016 está completando 35 anos.
Nos dias que se seguiram, o episódio continuou em destaque na imprensa. Autoridades sanitárias insistiam que o paciente se recuperava de maneira satisfatória. "Perdi as esperanças e entreguei tudo a Deus", confidenciou a mulher do caminhoneiro, "abatida e perplexa", a um jornalista. A Secretaria Estadual da Saúde (SES) tentava evitar uma repetição da histeria que acometera a população americana, que hostilizara e segregara os homossexuais – não existia perigo de contágio apenas com a proximidade ou um aperto de mão, frisavam os especialistas. "Dois mordomos abandonaram abastadas famílias de Porto Alegre, constrangidos com a vinculação da doença ao homossexualismo", divulgou ZH em outra matéria. O governo estadual disponibilizou um plantão telefônico, pelo número 26-32-02, para esclarecer dúvidas. No primeiro dia de operação, a média foi de uma ligação a cada três minutos. Trotes corresponderam a mais de 20% do total de chamadas: "Alô, é da casa da Aída?", indagavam os interlocutores. Seis pessoas relataram estar com os sintomas da síndrome e solicitaram instruções sobre como proceder. O então secretário da Saúde, Germano Bonow, pediu calma e destacou, em entrevista, que os sinais podiam se confundir com os de outras enfermidades.
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"O paciente pode apresentar febre, suores noturnos, calafrios ou diarreia persistente e estar apenas com uma pneumonia ou verminose. Esses sintomas, isoladamente e sem um estudo individualizado do paciente, nada comprovam", explicou Bonow.
O caminhoneiro do Sanatório Partenon morreu em 19 de janeiro daquele ano. Um óbito anterior, de dezembro de 1983, no Hospital Vila Nova, veio a público no mesmo período – segundo o epidemiologista Jair Ferreira, à época funcionário do Serviço de Dermatologia Sanitária da SES, este caso é o que representaria, de fato, a primeira notificação de aids no Estado, ainda que o doente do Partenon tenha centralizado toda a atenção e passado à história como o número 1. A SES não dispõe dos arquivos do período. Na prática, é provável que tenham ocorrido outros casos anteriores, que acabaram escapando ao radar dos serviços assistenciais.
Três outras notificações foram feitas em 1984. No ano seguinte, 10 novas ocorrências. A partir dali, contabilizariam-se dezenas, centenas, milhares de novas vítimas. Em 1986, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre abriu uma ala específica para cuidar desses pacientes.
– Foi uma situação muito especial na vida de um epidemiologista: identificar uma doença no seu início histórico e ficar observando como ela se comporta. Era um campo aberto para a pesquisa, nos obrigou a conhecer comportamentos. Mas custou muito para que o público se desse conta da gravidade do problema – recorda Ferreira, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A novidade nefasta assustava os profissionais de saúde. Cândida Neves, pneumologista que atendeu ao caminhoneiro infectado, lembra que havia enfermeiros e médicos que se negavam a tocar o corpo de soropositivos para procedimentos de rotina, como troca de sonda, e cirurgias. Devido ao trabalho regular com os doentes, Cândida também sofria preconceito – durante um jantar, um colega chegou a ofendê-la. À revolta provocada pela ignorância dos colegas, misturava-se uma sensação de impotência.
– Não tinha nada para fazer pelos pacientes – recorda Cândida, que depois se especializou também em infectologia e dedicou grande parte da carreira a HIV/aids. – Só podíamos dizer: "Vá para casa, se cuide, faça sexo seguro, não use drogas, não fume, venha aqui de três em três meses".
Na Porto Alegre da década de 1980, os casos logo começaram a ser identificáveis também pelas ruas. O emagrecimento rápido desfigurava e denunciava os enfermos. Muitos andavam cabisbaixos, constrangidos pela fama do "câncer gay".
"O fulano está com a 'tia'", comentava-se. A rapidez da evolução era assustadora.
– Foi uma doideira. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Eu olhava o obituário do jornal e via os meus amigos – recorda o arquiteto Zé Hélio Costalunga, que recebeu o diagnóstico de HIV positivo em 1988 e, no ano seguinte, enfrentou a perda do companheiro.
DIAGNÓSTICO ERA
UMA "MORTE CIVIL"
A necessidade de combater a onda estigmatizante que acompanhava a disseminação do vírus esteve entre as forças propulsoras para a criação do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids do Rio Grande do Sul (Gapa/RS), em 1989 (leia mais aqui). Em pauta, a luta pelos direitos da parcela mais discriminada: além de gays, também usuários de drogas e profissionais do sexo.
– Estava além de ser apenas uma doença. Era um vírus ideológico – define Gérson Winkler, um dos fundadores.
Uma igreja luterana no Centro abrigou a reunião inicial do Gapa, destino de pessoas atordoadas que precisavam desabafar e buscar alternativas para reestruturar a vida. Muitas eram discriminadas pela família, perdiam o emprego – mais adiante, o serviço de assessoria jurídica seria um dos mais procurados na organização não governamental, que acompanhava o processo de readmissão dos soropositivos em seus postos de trabalho.
– Era também uma morte civil. Com o diagnóstico, a sociedade já considerava aquele indivíduo como morto – conta Winkler.
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José Vicente Salvamoura se descobriu HIV positivo há 29 anos, ao doar sangue – a mãe sofrera uma queda e teve de se submeter a uma cirurgia no fêmur. Alertado de que havia um problema com sua amostra, o artista plástico foi convocado a comparecer ao hospital. Em uma sala onde dois seguranças estavam a postos para conter um eventual descontrole no momento da revelação do resultado do exame, o médico pouco falou: tratava-se de um vírus mortal, não havia nada que pudesse ser feito.
– Conto ou não conto para a minha família? – afligiu-se o paciente.
Sem orientação, Salvamoura rasgou o laudo e o atirou no lixo ao sair. "Eu tenho uma vida para viver", pensou. Iniciou um tratamento homeopático, com a crença de que assim reforçaria as defesas do organismo, e, mais tarde, sessões de terapia. Entusiasta da escrita, criou um personagem para extravasar a angústia: Ventosinha, um vírus cheio de tentáculos e ventosas, semelhante a um polvo, caminhava pelo meio-fio, distante dos pedestres, tentando defender os outros de si mesmo. Para preservar os pais, ainda enlutados pelo falecimento de uma filha anos antes, decidiu não contar nada.
– O que eles fariam além de sofrer comigo? Não conseguiriam me ajudar. Pelo contrário, talvez me atrapalhassem. Além do meu medo, das minhas dúvidas, de tudo com que eu tinha que lidar, teria que lidar também com os outros. Sabia que me demandaria muita energia controlar a mim mesmo – lembra.
O segredo perdurou por mais de uma década. Após a morte do pai, da mãe e de um irmão em um intervalo inferior a dois anos, o artista plástico contraiu uma pneumonia e foi hospitalizado. Uma psicóloga informou a família a respeito da soropositividade, e a partir de então o desconforto ficou evidente em situações cotidianas: parentes não queriam que ele tocasse em toalhas ou utensílios de cozinha, nem mesmo em animais de estimação, receando o contágio pelo HIV.
– Não viam com bons olhos a minha chegada. Era um constrangimento medonho. O ambiente mudava, era visível – constata Salvamoura.
No apartamento do bairro Santo Antônio onde mora e improvisa um ateliê, o artista, admirador de Van Gogh, Monet e Picasso, dedica-se no momento a um óleo sobre tela inspirado em uma música do compositor catalão Lluís Llach. Com a versão de Respiração obtida a partir de um tradutor online, rascunha os contornos de um céu estrelado, um povoado e uma barca no mar. "Agora que meus olhos vislumbram a serenidade do meu entardecer", diz a letra. Aos 62 anos, Salvamoura segue com rigor a prescrição do coquetel de antirretrovirais, disponível gratuitamente na rede pública desde 1996, e garante há tempo uma contagem viral indetectável. Não convive mais com uma sentença, e sim com uma doença crônica. Passadas mais de três décadas desde o início da epidemia, só morre em decorrência da aids o paciente que não se trata (leia mais aqui). Os demais, se cumprirem e se adaptarem ao tratamento, que pode se resumir a apenas um comprimido diário, estarão sujeitos aos mesmos problemas que qualquer pessoa sem HIV pode desenvolver com o envelhecimento, como o câncer. Filho de pais longevos – Américo alcançou 92 anos, e Nadyr, 84 –, o artista recorda a ocasião em que o pai lhe tomou a mão para tentar extrair uma predição do emaranhado de linhas desenhado na palma:
– Bah, rapaz. Você vai viver mais tempo do que eu.
Salvamoura agora ri ao fazer as contas:
– Estou louco de medo! Vou fazer 92 em 2047. Não sei como vai estar o mundo em 2047. Quero arranjar uma caverna no meio da Mata Atlântica onde eu não seja encontrado.
Mas a realidade atual, de soropositivos de vida longa e ativa, guarda um lado sombrio: os programas preventivos continuam ativos, mas com menos visibilidade, e o comportamento de alto risco começa a se instalar outra vez. No consultório, a infectologista Cândida está habituada a receber jovens que se contaminam por desprezar o uso de preservativo.
– A geração que agora tem menos de 30 anos não viu o Cazuza morrer, não viu aquela mortandade que dava pânico. Eles não viveram o pavor, e acho que a geração mais velha não transmitiu para eles o pavor. Nasceram na época em que a aids já tinha tratamento e não estão se cuidando – atesta a médica.
Confiante em pesquisas em curso que preveem a descoberta da cura em cerca de cinco anos, Cândida planeja um brinde com champanha junto dos pacientes quando a boa-nova se concretizar.
– Mas o esforço tem que começar de novo. Não adianta a gente ter a cura se não impedir as pessoas de adoecer. O vírus está aí para ficar, ele não vai se extinguir na natureza – adverte.