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JÚLIO CORDEIRO
Muito da reputação dos curandeiros advém de uma suposta relação com algum plano espiritual ou divino, o que confere já de saída, aos sacerdotes católicos, um espaço para atuar, mesmo que o tipo de cura que ofereçam não tenha relação com a doutrina da Igreja. Pode-se situar aí o padre Hilário Dewes, 63 anos, que se define como parapsicólogo e oferece consultas nas quais recorre a práticas como hipnose, regressão e imposição das mãos. Dewes remonta a uma experiência vivida na juventude a origem de sua conversão em terapeuta. Ele relata ter vivido nove anos sob o jugo de uma forte dor de cabeça:
– Do final dos 13 anos até os 22, não lembro se houve meia hora sem dor – diz.
Por causa do problema, os padres do seminário de Passo Fundo, onde Dewes fazia sua formação, decidiram enviá-lo para casa, para se tratar.
– Todos os profissionais da saúde que consultei me davam remédios e diziam que não tinha cura, que talvez aliviaria um pouquinho. Fui a muitos médicos. Quando sofre assim, você busca tudo. Então apareceu um irmão e me mandou no Amaral, em Santo Ângelo. Era um homenzinho bem pequenino. Ele mandou eu entrar na frente de todos que estavam esperando, mandou eu deitar no chão e caminhou em cima de mim um pouco. Fez uns 10 minutos de hipnose comigo. E eu saí de lá sem dor de cabeça, até hoje.
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Dewes retomou os estudos e ordenou-se padre aos 31 anos, mas já estava fisgado pelo universo da parapsicologia, mesmo quando isso significava ser ridicularizado pelos colegas de sacerdócio. Foi só em 2000 que se assumiu como terapeuta. A opção não o isentou de problemas. Há quatro anos, por exemplo, foi afastado das funções de pároco no município de Santa Clara do Sul, por rejeição a suas práticas pouco ortodoxas. Ele é reticente sobre o episódio.
– Isso é conversa de quem não entende das coisas. Os que são contra acham que a gente faz um monte de abracadabra, um monte de bobagens. Outros acham que é espiritismo. Mas todas as pessoas que conhecem, me acompanharam, me viram, passaram a me admirar. Padre ser terapeuta completa, amplifica, alarga e aprofunda exatamente aquela função primeira que se pensa do padre, de ser um bom pastor para as pessoas – defende.
Integrante da Congregação dos Missionários da Sagrada Família, o sacerdote vive hoje em Porto Alegre e atua como auxiliar em duas paróquias – pediu aos superiores para não assumir o comando de nenhuma, de forma a ter tempo livre para as consultas. Ele costuma atender no imóvel de um amigo, no bairro Mario Quintana. É uma espécie de salão com cozinha, churrasqueira, mesa de sinuca e várias cadeiras de plástico, destinadas aos alunos a quem o padre oferece, por 10 pagamentos de R$ 300, refeições incluídas, um curso de formação a terapeutas. As paredes trazem diplomas de Dewes e cartazes dos filmes Matrix Reloaded e O Incrível Exécito de Brancaleone.
É no fundo do salão que o padre faz as consultas, por R$ 110. Ele sempre recorre à imposição das mãos e à hipnose, levando os pacientes a regredir ao momento da concepção, ao parto e à infância, procedendo então a uma "reprogramação da mente". Dewes afirma curar males emocionais e físicos.
– Misturo fé e espiritualidade. Porque Jesus diz: tudo o que vocês pedirem ao pai, se tiverdes fé ele há de conceder. A parapsicologia diz: tudo o que você coloca na sua mente se torna realidade. Uso minha paranormalidade para ser um anjo bom na vida das pessoas. É um dom, um carisma, que vem da natureza, de Deus, sabe-se lá de onde. Quando as pessoas me procuram, é porque já foram em médicos e todos disseram: "Isso não tem cura". Aqui é mais ou menos o fim do ralo. Mas todos melhoram ou conseguem a cura. O câncer é uma das doenças mais psicossomáticas que existem. É preciso estudar os sentimentos que produzem o câncer. Interferir nas causas pode fazer o câncer regredir e até desaparecer.
Dias atrás, Dewes permitiu que um atendimento fosse documentado. Escolheu como paciente Pedro Scheuer da Silva, 28 anos. O padre sentou-se à beira de uma cama, onde o jovem deitou-se, cobriu-se com um cobertor e fechou os olhos. Durante quase uma hora, em voz compassada, Dewes repassou orientação para que Silva relaxasse:
– Faça o ar entrar profundamente em teu ser. Procura relaxar todos os teus músculos, sentindo-se leve, livre e solto. Leve. Livre. Solto. Relaxa teu cérebro e todo o sistema nervoso, sentindo-se leve, livre, solto. Respirando profundamente, imagine que a sua cabeça, seu pescoço, ombro, braços e mãos enchem-se de ar...
Mais tarde, o padre começou a pedir que Silva visualizasse seu passado mais remoto:
– Visualize o óvulo e o espermatozoide que se tornaram você se encontrando na trompa de tua mãe. Visualize isso como uma grande maravilha de Deus. E agora o óvulo já fecundado viajando para o útero da mãe. Veja-se neste útero como um pontinho de luz navegando e diga a si mesmo e a sua mãe: "Minha mãe, meu pai, eu te amo, eu te perdoo". E diga também: "Eu me amo, sinto-me amado, sou livre e feliz. Tudo comigo dá certo". Respire profundamente...
Quando Dewes pediu a Silva que remontasse ao instante de seu nascimento, o jovem, aparentemente adormecido, começou a chorar convulsivamente. O padre pousou as mãos sobre sua cabeça e prosseguiu:
– Sinta minha mão como se fosse a mão de Jesus e faça essa viagem de sair para fora, sentindo-se tranquilo, sereno, livre e confiante. Sinta tua mãe te abraçando, te acariciando, dizendo: "Meu filho, eu te amo". O filho passou, terminou a dor do parto. Visualize agora a tua mãe te dando a tetinha para você fazer a primeira mamada. Sinta o leite como expressão de amor e bem querer.
Minutos depois, Silva já estava de pé, desperto, descrevendo como conseguiu, por meio da hipnose, enxergar-se dentro do ventre da mãe, na sala de parto, e como isso o fez sentir-se melhor:
– Eu senti a angústia da minha mãe, o desespero dela na hora. Então por isso a vida inteira eu sempre tive essa necessidade de me certificar das coisas. Na minha infância, tinha esse vínculo com ela, até pelo fato de ela ter sofrido. As imagens que mais causavam raiva eram do meu padrasto agredindo minha mãe. Por causa desses fatos, como ela sofreu tanto, às vezes eu me sentia rejeitado. Na verdade ela nunca quis me rejeitar, ela queria que eu nascesse bem. Agora estou tranquilo, relaxado, bem diferente do que estava nesses dias atrás. Acho que agora se explica quase toda a minha ansiedade. Talvez no momento da concepção eu me senti meio que só, mas agora me sinto mais apto a lidar com seres humanos.
Provincial da congregação dos Missionários da Sagrada Família, o padre Jandir Haas argumenta que Dewes, seu subordinado, segue uma trilha já percorrida por Jesus, que também tinha o dom de operar curas e ajudar o próximo. Em reconhecimento a esse trabalho, a congregação atendeu o pedido do padre para ser liberado de certas obrigações, de forma que pudesse dedicar-se ao ofício de terapeuta – licença que Haas não garante que seja mantida em um futuro próximo. Para ele, não há incompatibilidade entre o catolicismo e a parapsicologia:
–Há muita confusão quando se fala em fenômenos paranormais, que às vezes são usados até como presença do demônio. Temos de ter clareza do que isso significa e que são fenômenos que acontecem e têm de ser tratados com seriedade, com ciência. A parapsicologia tem essa ciência de ajudar. A religião tem de se aproveitar da ciência para ajudar as pessoas que necessitam.
O fato de Dewes cobrar pelas consultas, diz Haas, não implica exploração dos pacientes:
– É mais como que um dízimo que ajuda na sobrevivência. Ele não está enriquecendo com isso. Mas se um dia acontecer de ficarmos sabendo que ele está explorando alguém nesse trabalho, é certo que vamos chamar para questionar.
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