Comparar o uso da bebida ao do smartphone pode fazer pouco sentido. Para quem dirige, as medidas são distintas: o motorista que é pego usando o celular leva a sanção mais branda e não tem o direito de dirigir suspenso. Mas com a popularização dos smartphones e carros cada vez mais tecnológicos, o enfrentamento e a abordagem aos dois problemas, para os especialistas, não deveriam ser tão diferentes quando se analisam os riscos. Dentro de um carro, a tecnologia pode ser tão fatal quanto o álcool.
– No sentido do efeito e no dano potencial, sem dúvida – afirma Flávio Pechansky, psiquiatra e diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas da UFRGS.
O pesquisador está à frente de estudos realizados no Rio Grande do Sul com o chamado "drogômetro", que pode detectar substâncias como maconha e cocaína por meio de uma amostra de saliva. Pechansky cita as pesquisas que comparam os efeitos das distrações causadas pelas tecnologias com o consumo de álcool.
Uma das principais autoridades no assunto, o americano e neurocientista David L. Strayer, da Universidade de Utah, estuda há mais de uma década os riscos das distrações ao volante, que incluem falar ou digitar. Em uma de suas principais pesquisas, ele usou um simulador para comprovar que conversar ao celular pode ser tão perigoso quanto beber e dirigir. O estudo, publicado em 2006, é aplicado como referência no mundo inteiro como evidência de que o uso do smartphone indiscriminado não é inofensivo. Pelo contrário. Ainda que apresentassem comportamentos diferentes ao volante – os participantes que consumiram a quantidade de álcool permitida por lei nos Estados Unidos eram mais agressivos, por exemplo –, a incapacidade de dirigir com segurança, em ambos casos, era prejudicada.
– Drogas, álcool e toda tecnologia que é introduzida no veículo atuam nas funções que são essenciais para dirigir um carro com segurança, que é a cognitiva e a motora. Todos diminuem a concentração, prejudicam o raciocínio, o tempo de reação e a percepção do motorista. Além disso, visão e audição são desviadas – explica Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diretor de comunicação do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).
Em uma pesquisa feita com 4,1 mil motoristas paulistas pelo Hospital Samaritano de São Paulo, 80% confessaram que dirigem e usam o celular ao mesmo tempo, sendo que 42% admitem mandarem mensagens de texto, o que é ainda mais grave. E essa tendência perigosa é global. No Exterior, especialmente nos Estados Unidos, as estatísticas já são alarmantes. O assunto motiva campanhas pelas próprias empresas de telefonia de celular e mobiliza ONGs e associações. Por lá, o conhecido acrônimo DUI (que significa em inglês, driving under the influence, ou dirigir sob efeito de substâncias) ganhou uma variação por grupos ativistas da causa: o DWI, ou driving while inTEXTicated, algo como "dirigir inTEXTOxicado", que faz referência ao envio de mensagens de texto.
Em pesquisa de 2013 feita por uma das maiores companhia de telecomunicações, a AT&T– que faz forte campanha pela causa e lançou aplicativo que avisa quem ligar ou enviar mensagens que o motorista está dirigindo–, 49% dos entrevistados afirmaram que digitam enquanto estão ao volante.
No Brasil, os dados que relacionam distrações a acidentes ainda carecem de levantamento, nos Estados Unidos, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) estimam que, em 2013, 424 mil pessoas foram feridas em acidentes de carro que envolviam um motorista distraído – o que inclui o uso de celular –, e 18% das ocorrências foram resultantes de distrações cometidas ao volante. Segundo o CDC, 31% dos acidentes de trânsito estão relacionados ao consumo de álcool e 16% a outras drogas.
– Diversos estudos internacionais comprovam que usar o celular pode ser tão perigoso quanto beber e dirigir. O impacto é praticamente o mesmo, mas é muito complicado o entendimento social sobre isso. O celular veio para ser uma facilidade na vida das pessoas, é difícil conscientizar que pode ser um risco – diz José Aurelio Ramalho, diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária.
Há também uma tendência de minimizar o comportamento do uso do smartphone como não sendo de risco, como explica Adriana Reston, coordenadora da Coordenadoria de Tecnologia e Ensino a Distância da Divisão de Educação do Detran-RS. Ela cita que o maior tempo gasto no trânsito pode fazer com que seja mais tentadora a vontade de olhar as redes sociais ou mandar mensagens. Entre os comportamentos mais perigosos abordados na formação de novos condutores, estão o consumo de álcool antes de dirigir, o excesso de velocidade, o uso do cinto de segurança, e claro, o uso do celular. Enquanto os demais já têm aceitação ampla pela sociedade de que são essenciais para evitar acidentes e mortes, o uso da tecnologia ainda é subestimado como fator de risco.
– Até 80% da nossa capacidade de cognição pode ser prejudicada quando falamos ao celular. A parte do cérebro responsável por manter a atenção vai trabalhar efetivamente bem quando eu desempenho uma ação de cada vez. Se eu tenho duas ações acontecendo ao mesmo tempo, concorrendo, uma fica prejudicada. Se estou falando no celular e um ciclista ou um pedestre cruzam a minha frente, será que vou ter tempo de me concentrar e tomar uma decisão rápida se estou tendo uma conversa séria ao mesmo tempo? – questiona.
Adriana cita estimativas de pesquisas que consideram que, para dar uma simples conferida em uma mensagem de texto, uma pessoa pode levar cerca de dois segundos – se o carro estiver a 100km/h, isso é o equivalente a percorrer 54 metros às cegas.
Mas engana-se quem acha que usar o bluetooth ou comandos de voz ao volante está a salvo. Segundo pesquisas também feitas por Strayer, essas tecnologias também geram distrações. Um estudo conduzido pela equipe do pesquisador em 2015 constatou que depois de "falar" com o seu carro, uma pessoa demora cerca de 27 segundos para recuperar a atenção total. O pesquisador cita que essas tecnologias ainda são imprecisas para detectar os comandos feitos pelos motoristas e ainda pouco fáceis de ativar. O americano deixa o apelo que as empresas tornem esses sistemas mais seguros. Ou seja, toda ação de comandar o carro por voz para fazer uma ligação, e até a conversa em si, distrai o motorista.
– Você começa a escutar e a raciocinar para ter uma resposta naquele momento, e passa a se desconectar de uma direção segura, já que pode se preocupar com o que a pessoa do outro lado falou. Não recomendamos o uso de qualquer tecnologia dentro do veículo, até estacionar o carro em um lugar seguro – afirma Dirceu.
Ramalho também é enfático: o uso do smartphone ao volante deveria ser enfrentado como o uso de álcool e drogas devido aos seus potenciais efeitos.
– As medidas contra o celular deveriam ser mais graves do que temos hoje, deveríamos tratar como a questão do álcool. Mas é difícil a fiscalização, especialmente, por causa das películas aplicadas nos vidros dos carros, que são utilizados pela população por questões de segurança – defende.
Fiscalização e campanhas
Entre os especialistas consultados por ZH, há um consenso: a fiscalização para esse tipo de comportamento pode ser complexa. As multas aplicadas para o uso do celular são feitas de maneira presencial: o agente, ao ver o condutor com o aparelho, registra a infração.
– O cidadão que usa o celular sabe que está cometendo a infração, tanto é que, em um cruzamento, quando ele sabe que pode ter um agente, ele esconde o celular. Só que esse mesmo indivíduo não sabe que pode morrer ou matar uma pessoa ao fazer isso. Isso precisa ser dito pra sociedade – diz Ramalho.
Pechansky acredita que a educação sobre o assunto deve ser acompanhada de uma fiscalização rígida.
– Não acredito em campanhas isoladas de ação potente de fiscalização. Mas, ao mesmo tempo, não adianta a fiscalização sem explicar o que está se fazendo. Nas ações da Balada Segura, por exemplo, há toda uma abordagem que explica para o motorista por que é importante dirigir de maneira segura. Mas isso tudo tem efeito educativo porque foi feito com a fiscalização. Na nossa cultura, o ato de dirigir é muito egoísta. O que nos faz mudar o comportamento é a percepção de que estamos sendo observados e podemos ser sancionados – avalia.
Em 2015, no Rio Grande do Sul, segundo dados do Detran-RS, foram registradas 75.704 infrações do artigo 252 do Código de Trânsito, que inclui entre outras condutas passíveis de multa, o uso de fones de ouvido e do celular ao dirigir um veículo. Em 2014, foram 94.498. O Estado tem cerca de 3,6 milhões de condutores cadastrados para dirigir carros.
Em Porto Alegre, 25.547 multas específicas sobre o uso do celular foram emitidas em 2015. Para o diretor-presidente da EPTC, Vanderlei Cappellari, o número é baixo, considerando que a prática é comum. Ele acredita que o Código de Trânsito deveria passar por uma atualização e que valor da infração, de R$ 85,13 não seria o suficiente para mudar o comportamento.
– Os valores estão muito abaixo do que se considera um incentivo para as pessoas não usarem o celular. O ideal seria uma abordagem, que ajudaria na conscientização, mas no trânsito urbano é muito difícil fazer isso – avalia.
Para mostrar a realidade fatal por trás do uso do celular, mas especialmente o envio de mensagens de texto ao volante, as campanhas sobre o tema usam abordagens impactantes – similares ao que já é visto nas ações de conscientização sobre o consumo de álcool e drogas antes de dirigir.
Empresas de telecomunicações, órgãos governamentais, ONGs e montadoras já abraçaram a causa. A AT&T, nos Estados Unidos, tem a campanha #itcanwait (em português, "Isso pode esperar"), que reúne vídeos com depoimentos de jovens que sofreram acidentes graves e os encoraja a fazerem uma "promessa" de não digitarem enquanto dirigem. Até o cantor Adam Levine participou da campanha #REDTHUMB (polegar vermelho, em português) da Nissan, em 2014. A ideia era atar uma fita vermelha no polegar para não esquecer de deixar o celular de lado enquanto dirige.