Um documento de 260 páginas sobre a família escrito pelo papa Francisco foi recebido como um avanço por alguns estudiosos da religião e membros da Igreja. Ele propõe a aceitação dos divorciados e dos homossexuais – embora não reconheça o casamento gay.
O texto abre a porta da Igreja aos divorciados que voltaram a se casar e traz a expectativa de que eles possam ter acesso, de acordo com cada caso, à hóstia, hoje vetada a esses fiéis. "Estas situações exigem um atento discernimento e um acompanhamento com grande respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que faça com que se sintam discriminados, promovendo sua participação na vida da comunidade", escreveu o papa.
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O avanço na questão dos divorciados pode iniciar uma nova batalha com a ala mais conservadora da Igreja, pois, na doutrina católica, os divorciados que se casam novamente não podem receber a comunhão – a menos que obtenham uma anulação do primeiro casamento ou se abstenham de sexo com o novo parceiro.
O padre Antonio Spadaro, diretor da revista jesuíta Civiltá Cattolica, afirmou que o documento representa um passo adiante para a Igreja.
– É a doutrina que evolui, que compreende e está atenta à vida concreta dos homens – afirmou.
Francisco aconselhou os padres a considerar a estabilidade do segundo casamento e a existência de filhos, entre outros fatores, na hora de decidir sobre como ajudar casais cujo primeiro matrimônio terminou em divórcio.
– Apesar de não citar explicitamente a admissão à eucaristia no texto, em uma nota de rodapé faz referência aos sacramentos. Francisco explica que não é possível fixar regras canônicas gerais, válidas para todos, então o caminho é o do discernimento caso por caso – explicou o vaticanista Andrea Tornielli ao site Vatican Insider.
Chamada de Amoris Laetitia (A alegria do amor, em tradução do latim), a exortação apostólica do pontífice foi divulgada ontem pelo Vaticano. Conforme Jaime Spengler, arcebispo metropolitano de Porto Alegre, o documento é o coroamento de um caminho feito nos últimos dois anos pela Igreja, em que se alarga a compreensão da família, cujas principais ideias seriam "discernir, acompanhar e integrar".
– O papa convoca bispos e padres a ter corresponsabilidade maior em torno das questões de matrimônio e família – afirmou.
O documento funciona como um pedido para que a Igreja tenha maior disponibilidade para escutar, uma vez que "não existe uma normativa geral de tipo canônica aplicável a todos os casos", conforme Francisco. Professor de Teologia da PUCRS, o frei Luiz Carlos Susin vê o documento como um "respiro de entusiasmo" para a Igreja. Segundo ele, o documento não deixa a porta da Igreja aberta para tudo, mas a torna "mais simpática".
– O papa volta a insistir que, embora tenhamos uma tradição, uma doutrina, o que decide no espírito da Igreja é uma pastoral de ajuda e de discernimento para que as pessoas possam tomar suas decisões. Não é "pode ou não pode", a aplicação de uma norma sobre a cabeça das pessoas, é um incentivo para que a gente vá afinando a própria postura com a missão da Igreja, que é o Evangelho – afirma.
Casamento gay não reconhecido
No capítulo em que aborda as relações homossexuais, o papa reitera que "qualquer pessoa, independentemente de sua tendência sexual, deve ser respeitada em sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar qualquer discriminação injusta e, particularmente, qualquer forma de agressão ou violência". No entanto, considera "inaceitável" equiparar as uniões entre pessoas do mesmo sexo com o matrimônio entre um homem e uma mulher.
– Francisco volta a insistir que a união de pessoas do mesmo sexo não tem a mesma estrutura do casamento entre homem e mulher, mas não há (no documento) nenhuma palavra que condene a união de pessoas do mesmo sexo – explica Susin.
O frei ainda acrescenta que as palavras de Francisco abrem espaço para um avanço maior nos direitos homoafetivos dentro da igreja católica.
– Outras igrejas não só respeitam (a união homoafetiva), como criaram ambientes em que pode dar a bênção. Talvez isso possa ser feito – completa.
O pontífice também manteve a posição da Igreja contra o aborto, afirmando que "de modo nenhum se pode afirmar como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de tomar decisões sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto de domínio doutro ser humano". Sobre eutanásia e o suicídio assistido, o papa afirmou que "são graves ameaças para as famílias".