Ele é cheio de manias, mas nem sempre chega com data marcada. Na Serra, sabe-se apenas que vem sorrateiro e logo nocauteia as temperaturas para baixo de 0°C. Pode ser abril ou setembro, do outono a primavera é melhor ter por perto um casaco grosso e a lenha seca para o fogão.
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O frio não vem sozinho, ele traz consigo os hábitos do povo serrano. Em Urupema, onde as temperaturas caíram 12ºC entre o meio-dia de terça-feira e o amanhecer de quarta, todos se viram obrigados a reprogramar o dia a dia. Até o andar das pessoas muda, o corpo enrijece e os passos aceleram. Alguns encolhem o peito, baixam a cabeça, escondem a boca e o nariz sob a gola da blusa ou cachecol. Outros, principalmente as crianças, brincam com as baforadas que ganham forma no ar gelado.
Salete Andrade de Souza encarou 70 anos de frio abrigando-se na cozinha aquecida pelo fogão à lenha de ferro posicionado quase no meio da cozinha, de modo que quem ali chega, se aconchega nas cadeiras e poltronas ao redor. Mas para ela nem todos gostam do protagonista do inverno:
– Eu não gosto de frio. Não entendo como tem tanta gente que vem aqui para passar trabalho.
E ele mexe com as pessoas de formas diferentes, mas não passa despercebido. Salete, que gosta de caminhar e sair ao ar livre, obriga-se a ter refúgio na cozinha. O fogão já foi testemunha dos 10 filhos criados pelo casal correndo pelo cômodo nos dias frios. Hoje, essa realidade é restrita aos fins de semana, quando os filhos trazem os netos para a casa da avó. De ponto em ponto, ela costura ao ruído da chaleira e das panelas sobre o fogão à lenha.
– No verão não rende tricotar, mas agora no inverno basta um mês para fazer uma blusa inteira – compara.
Do lado de fora da casa de Salete, localizada a 50 metros da praça central e do único termômetro de Urupema, o frio silencia as ruas da cidade de 2,5 mil habitantes. À noite, além do silêncio, o cheiro de lenha queimada invade as ruas e é dentro das casas que o inverno fica mais barulhento. Impedidas de sair ao relento, as pessoas se obrigam a dividir o ambiente com os familiares e amigos e então a conversa rola solta onde há um aconchego de calor. Nos restaurantes, os clientes passam mais tempo conversando à mesa enquanto apreciam um café. Vida pessoal, trabalho, sonhos e negócios são os temas comuns.
Receita robusta para encarar o tempo lá fora
No primeiro dia de frio de 2016, Tânia Bonfim Couto, de 48 anos, preparava um almoço no fogão a lenha na companhia da filha Michele e do irmão Márcio, que a visitava. Sobre o fogão, alimentos de sustância como arroz, feijão, carne, aipim cozido e couve.
– O frio pede uma comida mais encorpada. O pinhão também é perfeito.
Pela janela da casa de madeira, os três veem José Couto chegar, após passar a manhã tratando o gado e cuidando da lavoura vestido com bota, calça, chapéu e casaco para encarar o dia úmido e o frio de quarta-feira. Couto e seu cunhado, Márcio Bonfim, não se incomodam com esse companheiro de inverno.
– O frio é importante para a agricultura. Ajuda a amadurecer a maçã, por exemplo. E para trabalhar, às vezes é até melhor. Passar calor é muito complicado – relativiza Bonfim.
O inverno garante o sustento de muitos
Mas quando o frio chega, a preguiça é maior e poucos fazem questão de levantar antes do amanhecer. As pilhas de cobertas embrulham o corpo até a cabeça. Tomar banho exige determinação de atleta. A dica é aquecer o banheiro com a água do chuveiro ligado minutos antes. E mesmo assim, durante o banho é preciso alternar os ombros sob a ducha. Fora dela, é frio demais.
O biólogo Ari Fernando Raddatz deixou Florianópolis há 8 anos e investiu em uma pousada em Urupema, onde também pode ficar perto da paixão de observar os pássaros. Mas de manhã cedo, o frio rende mais um trabalho à família: fazer o filho Guilherme, de oito anos, se animar para ir à escola. No amanhecer gelado de sexta, o menino se empacotava com uma jaqueta grossa na cozinha, quando já era hora de estar na aula.
Entre um pinhão na chapa do fogão à lenha, uma taça de vinho e horas de tricô ou conversa, mais um inverno se aproxima e passará. Para quem trabalha com turismo, o frio é sinônimo de renda e movimento.
– O inverno é mais bonito, mais aconchegante e traz mais gente para conhecer as belezas do nosso Estado – continua Ari Fernando Raddatz, depois de conseguir colocar o filho a caminho da escola.
Na mesma manhã, Antônio Carlos de Liz atravessa o caminho de sua casa pela estrada de chão até o campo onde trata o gado. Liz é outro que entende o valor da estação para a dinâmica do trabalho e do proveito da terra.
– O melhor do frio é o quanto ele faz bem para pinhão, vime e gado. Quando não tem frio, há muito mais pragas e insetos. As colheitas também não são boas. O frio é preciso – defende o pecuarista e agricultor enquanto o sol descongela a geada na frente de casa.
Depois de tratar o gado, Liz volta para casa onde já deixou o fogo aceso, toma o café da manhã, conversa com a família e segue para catar pinhão na mata de araucárias.
Do outro lado de Urupema, Éudio Camargo de Arruda também colhe no inverno o movimento do turismo e convida os hóspedes a lidar com a rotina da fazenda. Na casa, se não é ao redor das lareiras, é ao redor do tradicional fogão à lenha que família e amigos se reúnem. Arruda adora uma conversa sobre amenidades ou negócios, mas sobre o clima que tomou conta da semana dos moradores do Estado compartilha um pouco o que pensa.
– É do sangue do serrano viver com frio, faz parte da cultura e cada um lida do seu jeito. Percebo que tem mudanças, mas elas são tão naturais – resume o pecuarista, que já morou em várias cidades do Brasil, mas como o seu canto de mundo escolheu Urupema.