Ao mesmo tempo em que se tornava presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher em Florianópolis, há dois anos, Kelly Vieira Meira, 34 anos, entrava para a história brasileira. A graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) seria a primeira pessoa transgênero a liderar um órgão voltado à consolidação de políticas públicas femininas.
A ativista foi novamente protagonista na semana passada: recebeu da Câmara de Vereadores da Capital a medalha Antonieta de Barros. A partir de agora, a homenagem destinada àquelas que prestaram serviços relevantes em defesa dos direitos da mulher catarinense não se restringe mais ao gênero atribuído no nascimento.
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A voz grave de Kelly, que é neta de um pastor evangélico, não incomoda mais – nem a ela, nem a família. O tom vindo das cordas vocais, que eleva o debate acerca das questões de gênero, contrasta com a feição, o cabelo e trejeitos delicados. O comportamento é nato – inspirado na convivência com outras três irmãs – e amparado no legado da filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir, principalmente quando a feminista diz que "não se nasce mulher, torna-se mulher".
– Meu processo de identificação com o feminino é desde muito cedo. Agora o processo de nomeação, de dizer o que eu sou ou o que eu deixo de ser, vai acontecendo paulatinamente, como ainda se dá. Porque ainda não consigo dizer o que sou. E nem quero. Porque você engessa possibilidades – arrisca Kelly, que frequentava sessões de terapia desde os seis anos de idade para alinhar-se à postura masculina esperada pela família religiosa.
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Somente aos 15 anos, quando começa um relacionamento e foge de casa devido às cobranças, é que ela sente a necessidade da transformação – iniciada pelo corpo e continuada na vida.
– Na minha adolescência, quando ainda nem se usavam as palavras transexual ou travesti e éramos todas inseridas no homossexualismo, passo a dar nome às coisas. Em relação à necessidade de ter um corpo. Um corpo que não era aquele que eu esperava ter. Um rapaz [com quem se relacionou] foi o disparador para eu ir atrás daquela que eu sou. Para gritar ao mundo que eu precisava da construção de um corpo.
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Defesa pelos direitos feministas
O ápice da identificação pelo gênero oposto se deu há três anos, quando Kelly escolheu o próprio nome, depois de enfrentar processo na Justiça. Por ser feminino, só ingressou na universidade depois da alteração, em razão do receio de sofrer preconceito. Para ela, escolher ser mulher vai além de ter seios, usar vestido ou passar batom.
– Uma mulher de pênis ou um homem de vagina: qual o problema? A cidadania não está na genitália, mas no direito de você se reconhecer e pronto.
Depois de superar a depressão, foram 10 anos de luta nas questões de gênero, passando por instituições como a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (Adeh), a Rede Nacional Feminista de Saúde e a Casa da Mulher Catarina – primeiro órgão feminista do Estado. O pioneirismo da mulher trans inspira outras ocupações semelhantes, a exemplo da ativista Chopelly Santos, que compõe o mesmo conselho a nível nacional.
A Secretaria de Políticas para Mulheres, do governo federal, garante que a atual composição da rede de mulheres travestis e transexuais nos órgãos fiscalizadores ocorreu por meio de articulação com os movimentos feministas.
– Tomei consciência política e dei sentido para aquilo que não tinha sentido. Há possibilidade de mudança se você se coloca no enfrentamento. Se você começa a movimentar as estruturas. Se você se permite a partir de sua vivência desconstruir algumas coisas, pensar junto, elaborar um processo de humanização de um conjunto da sociedade – analisa Kelly.
A pesquisadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da UFSC, Simone Ávila, acrescenta em estudo que o movimento transgênero deve continuar pautado contra discriminações que se refletem em mudanças sociais no mundo todo. A possibilidade de desvincular a transexualidade de patologias e, em contrapartida, avançar no enfrentamento das discriminações de gênero são as principais contribuições do movimento.
Avanço contra a resistência social
A condição da mulher na sociedade ainda incomoda Kelly. Da mesma forma, o preconceito no próprio ambiente de luta também é desafio para ela, que se mostra compreensiva com quem não a recebe no meio por ser mulher transgênero.
– Respeito o pensamento de todas, não quero criar mais enfrentamento. É a mesma luta, é ganhar força. Alguns movimentos não compram essa moeda. Até porque tem pautas históricas muito maiores que até hoje não conseguiram se desfazer, como a emancipação do corpo feminino. De repente, querem também que o feminismo abarque uma discussão que veio depois e que já ganhou espaço muito mais do que o próprio feminismo – reconhece.
O recebimento da medalha que leva o nome da professora, escritora, jornalista e política negra catarinense, Antonieta de Barros, junto de outras 38 mulheres é considerado um avanço pela coordenadora de Políticas Públicas para Mulheres em Florianópolis, Dalva Maria Kaiser:
– Afinal, ela é mulher. E é uma grande mulher que demonstra a coragem necessária de atuar na linha de frente da ampliação dos direitos femininos. Porque ainda há muita resistência nesses espaços de poderes.
Não deixando de lado a visão crítica, Kelly projeta a continuidade na representação política.
– Temos um paradoxo. A mesma Câmara que retira ideologia de gênero de pauta [nos Planos Municipais de Educação] é a mesma que me reconhece. Entendo como deboche. Mas acredito na pauta feminista mais do que nunca enquanto construção de mundo. Em que minimamente tenhamos um espaço possível de equivalência de direitos. Que o gênero não seja algo determinante para dizer quem é mais e quem é menos.