Uma decisão publicada na última terça-feira pela Corregedoria Nacional de Justiça tornou mais fácil, e automático, o registro de crianças geradas por reprodução assistida no país.
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A partir das novas regras, casais que geraram bebês com uso de material genético doado, com ou sem barriga de aluguel, não terão de recorrer à Justiça para registrá-los com a filiação correta. Se os pais forem casados ou viverem em união estável, basta que um deles vá ao cartório registrar o bebê.
Se a reprodução assistida for feita após a morte de um dos doadores, deverá ser apresentado um termo de autorização prévia específica do morto para uso do material biológico preservado.
O provimento é considerado uma conquista para as famílias que, antes, dependiam necessariamente do despacho de um juiz para poder garantir o registro dos seus bebês – o que poderia levar até dois anos, segundo estimativa da vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam), Maria Berenice Dias.
– Até a decisão final, a criança não tem nome, não entra no plano de saúde, não pode viajar ou ser matriculada em uma escola. Além disso, mães e pais não têm direito à licença parental – diz.
Esta é uma demanda antiga de várias organizações, como a Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (Abrafh) e o próprio IBDFam.
"Impedir que o registro seja levado a efeito quando do nascimento viola um punhado de direitos fundamentais, entre eles o respeito à dignidade humana", diz ofício encaminhado pela OAB à Corregedoria, que ainda destaca as "enormes discriminações" advindas da falta de regulamentação. "A negativa da anotação registral impede casais homoafetivos de realizar o sonho de serem pais, inviabilizando a realização do projeto pessoal de terem família e filhos."
Uma das inovações do provimento diz respeito ao nome da "barriga de aluguel" nos documentos do bebê. No registro civil, ao contrário do que ocorria antes, não constará o nome da gestante, informado na Declaração de Nascido Vivo (DNV), feita no hospital.
– Éramos obrigados a seguir a DNV e inserir o nome da gestante. Isso só poderia ser retificado depois, com decisão judicial – diz a oficial de cartório Letícia Franco Maculan Assumpção.
Legalmente, a chamada "doação temporária de útero" pode ser feita desde que a gestante tenha parentesco de até segundo grau com alguma das partes – pode ser avó, tia, filha, mãe ou prima, por exemplo.
Homossexuais, no entanto, têm jornada dupla com a Justiça. Para poderem usar um banco de esperma ou de óvulos, é imprescindível a análise judicial e autorização expressa do Conselho Regional de Medicina. Depois do nascimento, a luta é pelo registro do bebê.
Para Letícia, por fortalecer a visão de que o mais importante é a paternidade socioafetiva, a norma é uma "mudança de paradigma" – que demorou para chegar.
– Poderia ter sido junto com a autorização do casamento homoafetivo – diz, sobre o acórdão proferido em 2011 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No mesmo ano, em decisão unânime, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, equiparada à união estável.
– Sempre entendi que poderia registrar mas, como não havia autorização expressa, era necessário que submetêssemos aos juízes – explica.
Embora nos procedimentos de doação de gametas estejam assegurados o anonimato e o sigilo dos doadores, em situações especiais – por motivação médica –, podem ser fornecidas informações sobre suas origens genéticas.
A norma cita que, nessas hipóteses, o conhecimento da ascendência biológica não significará vínculo de parentesco entre doador e bebê.
– Portanto, não haverá entre eles quaisquer deveres ou obrigações relacionadas ao poder familiar ou ao direito sucessório – disse a corregedora nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi.
Para o secretário da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, o avanço é mais um passo para a "conquista da cidadania plena" dos homossexuais, que cada vez mais, segundo ele, têm desejado ter filhos, precisando encarar uma "dolorosa espera" pela Justiça.
– Estamos caminhando lentamente. Enquanto o Judiciário colabora com decisões como essa, nosso Legislativo ainda prefere não tocar no tema, pecando pela omissão e 'invisibilizando' a comunidade gay – afirma.
Casal teve de "adotar"os próprios filhos
Casadas há 14 anos, as brasilienses Marília Serra e Vanessa Bhering tiveram de encarar um longo processo judicial para poder garantir a seus três filhos um direito básico: a identidade. A luta das duas foi semelhante a de centenas de outros casais que geraram seus bebês com uso de material genético doado, com ou sem barriga de aluguel, e tiveram de recorrer à Justiça para registrá-los com a filiação correta.
Marília e Vanessa planejavam ter a experiência da gravidez, com doador anônimo de sêmen. O primogênito, Samuel, nasceu em 2011, depois de ser gestado por Vanessa. No ano seguinte, Marília deu à luz aos gêmeos Mateus e Felipe. Na letra fria da lei, Samuel era enteado de Marília e os caçulas, de Vanessa.
– O que mais nos incomodou foi a situação insólita de, pela inexistência de instrumentos jurídicos mais precisos, termos tido de adotar nossos próprios filhos – afirma Marília.
– Há casais que acham uma afronta entrar no processo habitual de adoção, optando por outras vias judiciais. Mas achamos que seria o caminho mais rápido, queríamos resolver isso logo – completa Vanessa.
A decisão judicial favorável saiu em janeiro de 2015, após mais de um ano em tramitação. Elas receberam visitas de assistente social e tiveram de provar, perante um juiz, que eram uma família. Responderam a perguntas como tempo de duração do relacionamento e métodos usados para engravidar.
– Foi até bem simples. Mas, se já houvesse a norma, seria uma chateação a ser evitada – diz Vanessa.
Na frente
Os Estados de Mato Grosso e Bahia já tinham o registro regulamentado desde 2014, assim como a cidade de Santos, que publicou portaria semelhante no ano passado. Mas só agora a norma é válida para todo o território nacional.
– Isso reduz o número de processos e também é fundamental para as famílias. O principal beneficiário do provimento é a criança, que tem reconhecido o seu direito de identidade – afirma Maria Berenice Dias, especialista em Direito homoafetivo.
O documento da OAB assinado por ela salienta que "não mais se pode mais fechar os olhos para a evolução da sociedade e suas mudanças. O Estado tem o dever de proteger as crianças". A carta também cita a Constituição Federal, que "ampliou o conceito de família", contemplando o princípio da igualdade de filiação. Na certidão dos filhos de homoafetivos o documento deverá ser adequado para que seus nomes constem sem distinção quanto à ascendência paterna ou materna, inclusive para o campo dos avós. Os oficiais registradores não poderão se recusar a registrar uma criança, sob pena de repreensão, multa, suspensão ou até mesmo perda do cargo.
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