Pais de crianças com deficiência matriculados na rede particular de ensino em Santa Catarina continuam apreensivos. Isso porque o impasse permanece uma semana depois da decisão liminar que autoriza cobrança de mensalidade mais alta a alunos com deficiência ser concedida pela 2ª Vara da Fazenda Pública de Florianópolis ao Sindicato das Escolas Particulares do Estado de Santa Catarina (Sinepe-SC). As escolas foram comunicadas da possibilidade de composição diferenciada das anuidades, mas nenhuma confirmou ter começado ou retomado a cobrança.
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Em nível nacional, o tema volta pela quarta vez à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) na tarde desta quinta-feira. Os ministros devem apreciar a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada em agosto de 2015 pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) – cujo teor já foi indeferido em liminar pelo ministro Edson Fachin – em que contesta dois artigos do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que garantem a matrícula do aluno com deficiência e a estrutura educacional inclusiva necessária, como um professor auxiliar ou um banheiro adaptado à disposição.
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Na prática, a Confenen quer que a família do estudante arque com custos adicionais referentes ao serviço pedagógico especializado. A postura motivou órgãos regionais a atuarem juridicamente na mesma linha, que coloca em perspectiva o direito da pessoa com deficiência e o direito do consumidor.
– Porque [na ação] se pretende evitar que a pessoa com deficiência visual não tenha que pagar pelo serviço que é prestado exclusivamente à pessoa com deficiência física. O custo de cada serviço vai compor a anuidade – argumenta o assessor jurídico do sindicato catarinense, Orídio Mendes Júnior.
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O sindicato não crava o valor que pode ser cobrado da família, mas a jornalista Sabrina Brognoli D'Aquino, 37 anos, sentiu no bolso a discriminação. Ela é mãe de Enzo, de 8 anos, que há cinco e meio foi diagnosticado com autismo. Desde então, o menino passou por cinco escolas diferentes.
– Em uma delas, era R$ 700 de mensalidade mais R$ 600 por um estagiário que teria de ficar com ele. Em outubro de 2014, fiz orçamento com outra escola e percebi a mesma diferença: R$ 1 mil mais R$ 1,2 mil. O problema é que não fica claro qual é esse apoio pedagógico a ser cobrado de forma extra e, se for o professor auxiliar, é um problema, na minha visão. Além do fato de que o aluno é visto como um cliente – defende Sabrina, que diz ter encontrado uma escola que não enxerga seu filho como um problema a ser resolvido.
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O advogado em Brasília Joelson Dias acredita no indeferimento da ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Confenen. Além disso, outras medidas que correm em instâncias inferiores – como a liminar concedida a favor das escolas de Florianópolis e a decisão que proíbe rejeitar matrículas a alunos com deficiência em Blumenau – devem aguardar a decisão do STF, conforme o jurista:
– O Supremo vai julgar a decisão do ministro Fachin, que já indeferiu a liminar. A expectativa é que o Plenário concilie essa decisão, porque está muito bem fundamentada. Ele fala da proteção aos alunos e alunas com deficiência advinda da convenção da ONU, da Constituição e da própria inclusão que se espera das pessoas com deficiência em uma sociedade plural.
Se a ação da Confenen for indeferida, os processos do Sinepe-SC podem ser suspensos, arrisca a presidente da Comissão de Direito das Pessoas com Deficiência da OAB-SC, Ludmila Hanisch. Para ela, o pedido da Confenen contraria dispositivos constitucionais, resoluções, pareceres, notas técnicas do MEC e tratados internacionais.
– Os ministros devem apreciar a liminar novamente, que vão pelo entendimento de Fachin ou vão deferir ao Confenen. Acredito que é muito difícil o Supremo mudar o entendimento, porque são muitos dispositivos a favor do direito das pessoas com deficiência.
Para Orídio Mendes Júnior, do Sinepe SC, o processo do STF não tem relação com a decisão em SC:
– A Confenen ajuizou ação para que as escolas não sejam obrigadas a prestar o serviço. O Sinepe SC, discordando desse posicionamento, ajuizou a ação dizendo que elas devem aceitar as pessoas com deficiência, mas o custo do apoio pedagógico especializado deve compor a anuidade e ser direcionado de maneira diferenciada para não violar o direito ao consumidor. A questão é quem paga: Estado ou pessoa com deficiência.
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Faz sentido cobrar à parte pelo serviço pedagógico especializado prestado ao aluno com deficiência?
Não. Essa cobrança reflete uma concepção arcaica e segregacionista de atendimento pedagógico especializado. Nas concepções atuais, esse serviço é estruturado em uma perspectiva inclusiva, devendo beneficiar a todos os estudantes. A presença de um profissional a mais, nessa perspectiva, permite qualificar o trabalho pedagógico de modo global, uma vez que facilita o trabalho com as dificuldades e potenciais de todos. A concepção por trás do posicionamento do Sinepe é muito semelhante à criação de uma classe especial dentro da sala de aula comum, como se o ensino especial fosse paralelo ao regular. Em contextos inclusivos, isso não se admite e todos os estudantes poderão usufruir de materiais, recursos didáticos e mediações pedagógicas do atendimento especializado. As crianças têm diferentes perfis cognitivos e sociais e é um mito achar que apenas as crianças com deficiência têm dificuldades que justificam a presença de um profissional a mais. O que deve mudar é o modo de fazer ensino, compreendendo a ampla variação humana.
O Estado cumpre a função de garantir os direitos do aluno especial na rede pública e privada (caso os pais não possam pagar a mensalidade diferenciada)?
Na tentativa de se livrar dos custos do atendimento especializado, o Sinepe tem jogado sua responsabilidade para o Estado. Afirma que os pais que não podem pagar os custos deverão cobrar do Estado. Todo esse imbróglio, na verdade, demonstra o equívoco dessas escolas particulares de se compreenderem apenas como empresas e não como instituições educacionais. Ao ofertarem serviços educacionais autorizados pelas instâncias oficiais, estão, na verdade, se comprometendo em seguir a orientação das mesmas leis e políticas educacionais das escolas públicas. A política educacional atual é inclusiva e não admite qualquer discriminação, seja de gênero, raça, classe, religião ou por deficiência.
Alunos com e sem deficiência se beneficiam quando estudam juntos? De que forma?
Trabalho com pesquisa nessa área há 18 anos e percebo que os estudos nacionais e internacionais estão caminhando para o consenso de que a inclusão, quando efetiva e sólida, beneficia todos os membros. Os estudantes com deficiência são mais desafiados no ensino comum e costumam acessar um contexto social mais rico de experiências do que em ambientes segregados e exclusivos. Já os estudantes sem deficiência são beneficiados, sobretudo, com o desenvolvimento de habilidades sociais necessárias à convivência na diversidade, como a empatia e o respeito às diferenças individuais. Com a inclusão, o professor é instigado a continuar sua formação para produzir aulas mais diversificadas e com isso todos ganham.
A discussão nos tribunais
Julho de 2015
É sancionada a lei 13.146/2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência, garantindo o acesso universal ao ensino e proibindo cobranças adicionais em instituições privadas.
Agosto de 2015
A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) ajuizou, no Supremo Tribunal Federal (STF), a ação de inconstitucionalidade 5357, questionando dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência que proíbem a cobrança, sob o argumento de que as exigências de acessibilidade e inclusão geram custo e que, sendo dever do Estado o atendimento educacional aos portadores de necessidade especiais, como previsto na Constituição, o Poder Público estaria exigindo das escolas privadas o que nem ele consegue cumprir.
Setembro de 2015
O Sindicato de Escolas Particulares de Santa Catarina (Sinepe SC) publica carta direcionada à comunidade escolar recomendando que alunos com deficiência sejam matriculados em instituições especializadas.
Outubro de 2015
Termos usados na carta do Sinepe geraram repúdio de pais, alunos e outras organizações. Manifestação cobra resposta de escolas particulares por carta considerada ofensiva a crianças com deficiência.
É protocolado na Alesc um projeto de lei que proíbe as escolas particulares catarinenses de cobrarem a mais na matrícula ou na mensalidade de crianças com deficiência, estipulando multa de R$ 1 mil por infração (que dobra a cada reincidência).
Em comunicado, o Sinepe SC se retrata pela carta em setembro. “O portador de necessidade especial precisa de educação, tratamento e acompanhamento também especiais, por instituições capazes de proporcioná-los com sucesso, e não charlatanismo”, dizia o texto.
Dezembro de 2015
O Tribunal de Justiça de SC decide que escolas particulares de Blumenau devem aceitar a matrícula de alunos com deficiência, como é o caso da pequena Camille Krieger, que teve dificuldades para conseguir uma vaga na cidade.
Março de 2016
Juiz autoriza escolas particulares de Florianópolis a cobrarem preços diferentes a alunos com deficiência.
Educação especial
Cobrança diferenciada de mensalidade de alunos com deficiência volta à pauta do STF
Apreciação de ação deve influenciar processos similares que tramitam em SC; Na Capital, decisão liminar autorizou valores diferenciados, mas nenhuma escola começou a cobrar
Gabriele Duarte
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