Se você tem a impressão de que seus amigos estão melhores do que você, talvez não esteja de todo enganado. A ciência, que não é feita apenas de boas notícias, encontrou as primeiras evidências de que a grama do seu vizinho não só é mais verde como provavelmente também é mais bem aparada, orgânica e fotogênica - sem filtro - do que a sua.
Apelidada de paradoxo da felicidade, a ideia de que os seus amigos são, em média, mais felizes do que você foi confirmada por uma pesquisa das universidades de Indiana, Nova York - ambas nos Estados Unidos -, e Wageningen, na Holanda. Pelo menos no universo de 140 caracteres do Twitter.
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Para chegar ao que os pesquisadores consideram a primeira evidência desse paradoxo, foram analisados históricos de cerca de 40 mil usuários do microblog ao redor do mundo. Confiantes de que o comportamento nas redes reflete-se no bem-estar das pessoas fora delas - e que pessoas menos felizes enviam mensagens mais negativas -, eles analisaram o teor do que foi postado pelos usuários e por seus contatos diretos (aqueles que seguem e são seguidos pelo perfil) para chegar ao que chamaram de escore da felicidade.
Primeiro, os pesquisadores formaram dois grupos de palavras, todas em inglês: um considerado positivo (amizade, amor, bom são algumas delas) e outro negativo (ódio, inimigo, mau). Um algoritmo se encarregou de varrer as postagens dos perfis sorteados em busca dos em torno de 6,5 mil termos elencados. A diferença entre o número de palavras positivas e o de negativas nas mensagens resultou no nível de felicidade de cada um.
Depois disso, o resultado do usuário foi comparado com os de seus contatos diretos. O estudo confirmou que aquela pontinha de inveja que você sente da vida dos outros não é de todo infundada: em quase 60% dos casos, os amigos dos perfis que tiveram posts analisados apresentavam tuítes mais felizes.
- Nós já sabíamos, por outras pesquisas, que existe um paradoxo da amizade, de que seus amigos, em geral, têm mais amigos do que você. Mas essa foi a primeira vez que constatamos que ocorre a mesma coisa com a felicidade - diz o pesquisador português Bruno Gonçalves, da Universidade de Nova York.
A pesquisa ainda constatou que a vida dos outros ser melhor do que a sua é uma realidade também para os usuários mais satisfeitos. Tanto entre o grupo dos mais infelizes quanto entre os considerados mais felizes, a estatística se repete. A evidência sugere, porém, que quanto mais triste é o indivíduo, mais forte é o paradoxo da felicidade que ele enfrenta.
Os pesquisadores admitem que seu trabalho tem limitações - um algoritmo pode não ser a melhor maneira de analisar o quão feliz alguém é, para começar. Mas acreditam que o resultado é um indício de um comportamento que é verificado para além dos dispositivos de mídia.
- As pessoas já assimilaram o funcionamento das redes e as usam no cotidiano. Atualmente, acredita-se que o comportamento de uma pessoa no mundo virtual é um espelho da sua vida real - conclui o pesquisador.
Adesão altera percepção da realidade
Não é preciso ser um grande investigador social para perceber que a vida, em geral, é mais colorida nas redes. Mas as pessoas passarem cada vez mais tempo imersas pode estar alterando suas percepções da realidade - e fazendo a vida real perder um pouco da graça. E se os mais adeptos conseguem expressar de forma mais fiel aspectos de fora das redes, em contrapartida, as mídias sociais expõem uma versão editada - uma espécie de "melhores momentos" - da vida das pessoas.
Ninguém sai por aí alardeando os próprios fracassos no mundo virtual. Mas essa versão melhorada, ampliada e fora de seu contexto pode causar distorções.
- A mídia social é um jogo. Ela move a ideia que temos de interação social para fora do seu contexto. Dentro desse mundo fantástico, você mistura ficção com realidade. É fácil de acreditar que a imagem que uma pessoa cria na rede é real, porque os personagens são reais. Ninguém vê o Homem Aranha no cinema e sai achando que ele existe. Mas se algo envolve pessoas que você conhece, vai achar que é possível - diz o doutor em Comunicação Digital e professor da USP Luli Radfahrer.
Sem o confronto das relações diretas, aquele seu primo brigão, por exemplo, tem mais recursos para bancar um pacifista convincente. E você ainda vai curtir os posts paz e amor dele. Além disso, a relação intensa dos usuários com as redes sociais pode se tornar um gatilho de paranoias, exacerbando a sensação de inferioridade despertada por algumas situações, como explica a psicóloga Luciana Ruffo, do Núcleo de Pesquisa de Psicologia em Informática da PUC-SP. É o que ocorre quando, em vez de simplesmente fazer um happy hour sem você, seus amigos postam uma foto do encontro no Facebook. A sensação de exclusão que inexistiria em outro contexto - ou seria rapidamente superada - é redimensionada:
- Isso (de seus amigos beberem sem você) sempre aconteceu. Mas, quando está expresso na rede, você se dá conta de que é verdade. E ganha uma proporção maior, porque você tem mais tempo para ficar remoendo aquele acontecimento.
Apesar disso, a psicóloga não acredita que a superexposição a esse tipo de mídia possa desencadear comportamentos depressivos.
- Quem vê um acidente na rua pode ficar mal naquele momento, mas, se está bem consigo mesmo, vai seguir a vida normalmente. Já para alguém que tem medo de morrer, isso aumentará um drama pessoal. Com o que se vê nas redes também é assim. As pessoas podem se sentir tristes ao ver uma postagem, mas não quer dizer que estão mais infelizes.
O imperativo da felicidade não nasceu nas redes
Se, nos fóruns virtuais e nas primeiras redes sociais, as pessoas queriam compartilhar informações, discutir ou mesmo "causar", a "Era Facebook" se consolidou como um espaço de busca por aprovação social. Mas a obrigação de se mostrar contente, segundo especialistas, está por toda parte.
- Não foi das redes sociais que surgiu a necessidade de ser feliz o tempo inteiro. Em outros momentos da história, o imperativo social foi a liberdade ou a prosperidade. Hoje, parece ser a felicidade - diz Fernanda Carrera, doutora em comunicação pela Universidade Federal Fluminense.
A percepção é compartilhada pela doutora em Linguística Maria Leidiane Tavares. Para a pesquisadora, que estuda narrativas de vida no Twitter, as redes sociais são, cada vez mais, um espaço de busca por cumplicidade. E a interação nesses espaços se baseia nos valores de cada sociedade.
- A rede social não é mais uma "coisa de nerd". É um lugar do cotidiano, como a casa, a universidade, o trabalho. E vivemos, atualmente, uma cultura de busca da felicidade. As pessoas hoje não querem necessariamente uma boa família, um bom emprego. Isso não basta se não for traduzido em termos de felicidade - avalia.
Professor da ESPM São Paulo, o antropólogo Fred Lucio destaca que pesquisas que usam a felicidade como indexador precisam ser analisadas com cautela. Isso porque, lembra o pesquisador, o conceito de felicidade não pode ser mensurado. Ainda assim, acredita que trazer o assunto à tona dá oportunidade para que as pessoas reflitam sobre essa realidade:
- Esse tipo de pesquisa (do paradoxo da felicidade) serve para levantar mais questões do que trazer constatações. É bom para pensar e indagar: o que se entende por felicidade? Fazer esse questionamento é importante para repensarmos nossas bases de satisfação.
"Pode haver uma margem de erro"
Bruno Gonçalves, integrante do grupo que estudou o paradoxo da felicidade
Pesquisador da Universidade de Nova York, o português Bruno Gonçalves integra o grupo que estudou o paradoxo da felicidade. Físico de formação, ele trabalhou com profissionais das áreas de Psicologia e Informática, aplicando técnicas de análise de dados para avaliar um objeto ainda pouco explorado em sua área de atuação:
- Sempre me interessei pelas Ciências Humanas. Tenho usado a física para compreender o comportamento das pessoas - conta o pesquisador.
De onde surgiu o interesse pelo paradoxo da felicidade?
Tínhamos conhecimento da existência do paradoxo da amizade, um estudo da área da Psicologia que começou nos anos 1990 e comprovou que a impressão das pessoas de que seus amigos tinham mais amigos do que elas era verdadeira. Nos últimos anos, surgiram estudos que indicaram que as pessoas mais populares nas redes são mais felizes, o que também se confirmou na nossa pesquisa. Mas queríamos ver se a ideia que as pessoas têm de que as outras são mais felizes era realidade.
Por que o Twitter?
Porque é uma rede onde as postagens são públicas. É possível acessar o histórico do usuário sem quebrar sua privacidade. Em uma rede como o Facebook, não conseguiríamos fazer a pesquisa sem isso.
A análise das postagens foi feita por um algoritmo, sem levar em consideração o contexto em que as palavras foram utilizadas. Como o estudo lidou com um possível conteúdo irônico nas mensagens?
Lidar com esse tipo de postagem é um dos grandes problemas que temos. Não há nenhum método para identificar isso. Então, entendemos que pode haver uma margem de erro. Mas acreditamos que, com uma abordagem mais refinada, o paradoxo se acentuaria ainda mais.
O quanto você acha que os resultados da pesquisa podem ser verificados na vida fora das redes?
Nós acreditamos que o que acontece nas redes é um reflexo da vida real. Mas um dos nossos objetivos, em um futuro mais distante, será repetir essa pesquisa no mundo real. Deve levar mais tempo, exigir outro tipo de recurso.
Pelo jeito, todo mundo terá de lidar com o fato de que sempre vai ter muita gente mais feliz. Há algo que se possa fazer a respeito?
A ideia é de que os resultados obtidos na pesquisa possam fazer com que as pessoas encarem isso como um fenômeno natural. Se elas tiverem essa consciência de que não é algo pessoal, mas que afeta a todos, não vão se deixar abater por isso.
Você também é usuário do Twitter. Incluiu seu perfil na pesquisa?
(risos) É interessante isso... Não colocamos filtro para que não entrássemos na pesquisa. Mas nunca procurei ver se meu nível de felicidade foi analisado, nem quanto é. Talvez seja melhor não saber.