Por seis dias, um pavilhão de 64 mil metros quadrados em São Paulo se tornou uma incubadora caótica de ideias futuristas. Quem passou pela Campus Party, o maior evento de tecnologia e internet do país, foi desafiado a pensar sobre o futuro.
O tema principal da edição foi Feel the Future (em tradução livre, Sinta o Futuro) e, por mais que possa parecer um grande clichê, quando se trata qualquer tema relacionado à tecnologia, o evento tira da zona de conforto até os mais céticos em relação a grandes mudanças impulsionadas pelas máquinas em um curto período de tempo.
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Fazer previsões sobre máquinas substituindo humanos ou sobre carros que andam sem motoristas pode ser arriscado. Mas na Campus Party, especialistas de diferentes áreas, de juristas a astrofísicos, discutiram tendências que devem estar no centro dos debates sobre a internet e a tecnologia, seja daqui a seis meses ou em cem anos.
Nos filmes de ficção científica, ciborgues podem ser figuras caricatas e distantes da realidade do século 21. Mas na Campus Party, o público foi apresentado a dois humanos dispostos a incorporar dispositivos eletrônicos ao próprio corpo. Moon Ribas e Neil Harbisson, da Fundação Cyborg, palestraram sobre a implementação de chips e de tecnologia cibernética para ampliar a capacidade humana. Para eles, a tecnologia deve ser incorporada dentro do organismo, e não como wearables, aparelhos inteligentes como óculos e relógios. A tendência ciborgue, para eles, será comum ainda neste século. Harbisson nasceu com uma doença que causa "cegueira" para as cores e, há uma década, implementou uma antena atrás do crânio para poder "ouvir" as cores.
- Hoje, é comum ver as pessoas dizendo "estou sem bateria", em vez de "meu celular está sem bateria". Isso já mostra como consideramos o smartphone uma extensão do nosso corpo - discursa Harbisson.
Moon, que implantou no braço um chip que recebe via internet vibrações que indicam quando um terremoto acontece em alguma parte do mundo, enxerga o movimento ciborgue como algo natural da evolução humana.
- O movimento ciborgue é sobre identidade. Hoje, a implementação de tecnologia no corpo esbarra em questões bioéticas, o que nos faz lembrar dos anos 1960, quando as pessoas queriam mudar de sexo e enfrentavam os mesmos problemas. Chegamos a um ponto em que a modificação no corpo não é permitida ou considerada ética se não for absolutamente necessária. O movimento ciborgue quer dar às pessoas o direito de mudar o jeito que elas se relacionam com o mundo - explicou Moon.
O marco civil, conhecido como a constituição da internet no Brasil, sempre foi pauta nas edições da Campus Party. Neste ano, um painel que contou com a presença do advogado e professor Ronaldo Lemos e ministrado por Gabriel Sampaio, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, debateu a segunda fase do marco civil da internet.
Na última quarta-feira, a pasta lançou uma consulta pública para regulamentar a lei sancionada em 2014. Até 29 de fevereiro, o texto preliminar pode receber contribuições da população. Até lá, a legislação deve ser motivo de debates. Para Ronaldo Lemos, a sociedade também deve ficar atenta ao movimento do Congresso Nacional em relação à internet nos próximos meses. Ele cita a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos crimes cibernéticos, criada em 2015 e que deve durar até março. A CPI apura casos de crimes na internet e quer propor a criação de novas leis de criminalização.
- O cenário que se apresenta hoje no Brasil é muito ruim. Enquanto o marco civil apresentava uma bandeira positiva, para proteger direitos, liberdade de expressão e neutralidade da rede, hoje, a agenda do Congresso a respeito da internet é unicamente direcionada à criminalização, como se a internet fosse apenas para cometer crimes e fraudes. A internet é o lugar do empreendedor, como mostra a Campus Party - disse Lemos.
O tema empreendedorismo está no DNA da Campus Party. No evento, um palco foi reservado apenas para tratar do tema e um espaço foi delimitado apenas para a exposição de start-ups. A formação de novos talentos e a construção de conhecimento feita nas universidades deve motivar uma nova legião de empreendedores, e não de funcionários, como avalia o economista e sóciodiretor da Overplay, start-up de desenvolvimento de jogos, Jairo Margatho.
- O futuro do mercado de trabalho é o empreendedorismo. Quando começa a ter crise de emprego no país, como agora, as pessoas têm de correr atrás para gerar renda de alguma forma. Quem antes pensava em trabalhar em multinacional vai começar a trabalhar para si mesmo, para vender os próprios serviços - avalia.
A máquinas estão cada vez mais capazes de realizar tarefas que antes, apenas humanos com certas competências poderiam fazer. Daniel Susskind, professor e pesquisador de economia da Faculdade de Balliol, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e autor do livro O Futuro das Profissões, apresentou no evento o resultado dos seus estudos sobre a relevância das profissões tradicionais no futuro. Sites que dão orientação jurídicas têm capacidade de atender um número maior de pessoas e com mais agilidade. Computadores têm o poder de produzir relatórios e fazer cálculos com mais rapidez. Sistemas avançandos desafiam a necessidade de especialistas em diferentes areas.
À frente do Instituto Campus Party, Francesco Farruggia acredita que a reestruturação do mercado de trabalho pode ocorrer em até 15 anos. Ele acredita que 40% da força de trabalho no futuro não será como a de hoje, e que, sim, as máquinas terão a capacidade de substituir os humanos.
- Em 2016, vamos ter mais capacidade de inteligência artificial do que nos últimos 50 anos. A máquina, daqui para frente, aprende sozinha, algo que não fazia antes. E isso vai tirar o trabalho da gente. Como vamos fazer com as pessoas que não terão trabalho? E como iremos sustentar um sistema previdenciário que precisa pagar pensão mas não tem contribuição? - questiona Farruggia.
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Na Campus Party, os debates mostraram o desafio para reestruturar o mercado das profissões e avaliar as questões morais e éticas de deixar máquinas e softwares substituírem humanos. Queremos que uma máquina faça o julgamento de uma sentença de uma prisão perpétua, por exemplo? Quem participou da Campus Party foi desafiado a pensar sobre isso.