Na próxima encarnação, quero vir na forma de um malote de dinheiro. À minha passagem, multidões vão abrir alas e curvar-se em solene reverência, como diante de um rei.
Vejam se não tenho razão. Quando um pé-rapado tranca uma rua de Porto Alegre para protestar, as vozes da indignação se levantam. Buzinam, chamam de vagabundo, exigem que a polícia baixe o sarrafo. Mas nunca vi alguém se revoltar nas dezenas de ocasiões diárias em que é sua majestade, o vil metal, quem bloqueia a calçada, a ciclovia e a pista de trânsito.
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Sim, estou falando desses mamutes motorizados conhecidos como carros-fortes. Para eles, as regras de uso do espaço público não valem. Têm licença para estacionar em qualquer lugar, cuspir sobre o passeio criaturas munidas de armamento pesado e atravancar a vida da cidade. Ninguém reclama, ninguém buzina, ninguém multa. Diante do capital, a cidade diz amém.
Podem me taxar de antiquado, de utópico inveterado ou simplesmente de implicante, mas acredito mesmo que o espaço público tem de ser público. Que as normas para seu uso devem valer para todos - inclusive para setores tão sofridos como o sistema bancário e financeiro.
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Há outra instituição que se beneficia, no uso das vias públicas porto-alegrenses, de privilégios que emanam o ar feudal da corveia ou do direito de pernada: as nossas Forças Armadas. Em pleno centro de Porto Alegre, em uma zona onde encontrar vaga para deixar o carro equivale a acertar na loteria, os militares mantêm o confortável monopólio do estacionamento ao longo de quarteirões, ali ao pé de seus quartéis. Conveniente, mas com um gostinho amargo de arbitrariedade.
Na região, placas de cor verde ao longo da calçada indicam que se trata de área militar, e supostas razões de segurança nacional asseguram controle exclusivo da via à turma da caserna. Que razões seriam essas, desconheço. Chamem-me de antiquado, de utópico, etc, mas acredito que os militares, que têm um histórico - como diremos? - tão delicado no que diz respeito aos valores democráticos, deveriam tomar a honrosa iniciativa de democratizar o uso dos espaços do Centro, seja para estacionamento de qualquer cidadão, abertura de ciclovias ou o alargamento de calçadas, tornando a área hospitaleira para o pedestre.
Mas admito que posso estar enganado, que talvez os nazistas ou bolcheviques comecem a invasão justamente pelo centro de Porto Alegre, e que a barricada de carros do nosso oficialato, enfileirados ao longo do meio fio, acabem por ser a nossa salvação.
Opinião
Itamar Melo: por que alguns carros têm privilégios nas ruas de Porto Alegre?
O colunista escreve semanalmente sobre Porto Alegre
Itamar Melo - de Capão da Canoa
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