Assim como os antigos ingleses celebravam o alinhamento de pedras e sombras em Stonehenge e os astrônomos modernos se deliciam com os eclipses solares, a alegria enche meu universo pessoal durante os breves intervalos em que minhas três principais senhas profissionais convergem.
Uso todas elas pelo menos uma dúzia de vezes ao dia para acessar os sistemas hospitalares necessários para tomar notas, prescrever tratamentos, conferir os resultados do laboratório e os e-mails. Elas precisam sem trocadas a intervalos de três, quatro e seis meses e desenvolvi uma estratégia para renovar cada uma; porém, o ritmo de rotação distinto me obriga a sempre prestar atenção em pelo menos uma delas, sugando minha concentração e, de tempos em tempos, causando algum desastre. (Senha incorreta. Contate o administrador.)
Mas também existem as semanas de glória em que as três senhas são a mesma, um momento no qual a mente e os dedos voam e posso me concentrar em outras coisas, como os pacientes que estão a minha frente.
Além dessas três senhas, tenho muitas outras: uma para nossa antiga coleção de registros eletrônicos (cuja informação não pode ser transferida para nossa base de dados atual), duas para os computadores do laboratório que não se conectam ao servidor principal, uma para o sistema de cobrança, outra para os cursos on-line obrigatórios e mais uma para os formulários de avaliação e a agenda dos residentes. Quase todas elas também têm seu lento ciclo de renovação; acompanho suas mudanças com um cartão todo amassado que carrego no bolso.
E eu deveria ser grata às senhas que tenho, porque há muitas outras que não sei. Por exemplo, não tenho acesso aos registros eletrônicos usados na nossa sala de emergência, então não sei muito bem o que acontece com nossos pacientes até que eu possa atendê-los em um dos ambientes digitais ao meu alcance. Aliás, também não tenho acesso a outro sistema que é usado pela maioria dos nossos consultores externos (e eles não têm acesso ao nosso).
Quem sabe o que os pedreiros bíblicos cantavam enquanto trabalhavam na construção da Torre de Babel? Esta é a nossa trilha sonora: O que o cara do rim disse para você fazer? "Tem certeza?" "Como o PS explicou isso?" "Dá para trazer os novos remédios da próxima vez?"
Como dizem no livro do Gênesis, os seres humanos que falam a mesma língua se saem relativamente bem - até que um poder superior toma uma decisão apressada e compra um software ruim, interrompendo qualquer tipo de colaboração produtiva.
Em 2009, menos de 10% dos hospitais norte-americanos contavam com qualquer tipo de registro médico eletrônico. Em 2014, 75% tinham pelo menos algum sistema básico, todos se apressando para realizar as transações eletrônicas obrigatórias segundo a Lei de Saúde Acessível do governo Obama.
Os dados não indicam quantos hospitais, assim como o nosso, estão repletos de produtos de fornecedores concorrentes, cujo código proprietário impede a colaboração entre diferentes sistemas. Também não existem algoritmos que desembaracem os fios de um sistema tão cheio de linguagens diferentes quanto o nosso.
A corrida em favor das bases de dados eletrônicas teve a melhor das intenções. De acordo com o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, "o uso de registros médicos eletrônicos vai diminuir a burocracia e o trabalho administrativo, cortar custos, reduzir erros médicos e, o mais importante, melhorar a qualidade do tratamento".
Ninguém na nossa Torre de Babel questiona esses objetivos; lutamos dia a dia para transformá-los em realidade e, por incrível que pareça, muitas vezes somos bem sucedidos.
Somos bem sucedidos graças ao papel.
O papel se converteu em nossa língua franca, nosso plano de contingência permanente. Em nosso novo universo digital, testemunhamos seu curioso ressurgimento. É verdade que não fazemos mais receitas físicas, mas agora é comum enviarmos por fax ou entregar em mãos versões impressas de tudo o que fazemos. Quando não sabemos qual linguagem eletrônica nosso interlocutor fala (e quase nunca sabemos), ele é a boa e velha opção.
Além disso, um dos nossos sistemas imprime automaticamente um resumo do registro médico de cada paciente que recebemos - mesmo no caso dos que optaram por sigilo. Nunca descobrimos como cancelar essas impressões. Entregamos diretamente para a pessoa ou, caso ela não o queira, deixamos tudo na impressora para que seja descartado. E assim desperdiçamos uma resma de papel por dia.
Há alguns dias, quando a troca de senhas havia bagunçado toda a minha manhã, parei no banheiro feminino ao lado da nossa área de trabalho. E ali, vi um desses resumos na lixeira. Nele, era possível ler (em negrito) o nome, o endereço, a data de nascimento e o número do histórico médico de uma das minhas pacientes, ao lado de todos os diagnósticos médicos, prescrições, datas de consultas e a senha supersecreta para acessar o portal dos pacientes.
De que adianta tanta segurança na troca de informações, de que adiantam as boas intenções eletrônicas, a ordem e o controle por trás de todas as senhas de acesso? Eu conseguia ver as rachaduras nas pobres colunas da nossa Torre de Babel. Pus o papel no meu bolso e o levei até a pilha que seria descartada na sequência.