Ter duas mães é a única realidade que Carolina*, 9 anos, conhece. Mas se a maternidade dupla nunca foi contestada no cotidiano da família da zona leste da Capital, uma frase nos documentos da menina deixava uma lacuna importante. Em vez de "pai não identificado", Carolina queria também o nome de sua mãe socioafetiva - e não apenas de quem a deu à luz. Nesta semana, a Justiça gaúcha autorizou o registro do nome das duas mães na certidão da criança. A decisão não é inédita e correu em segredo de justiça para preservar a menina e a família.
- Nossa filha começou a nos questionar por que, na chamada da escola, tinha o sobrenome de só uma de nós. "Por que tenho esse e não aquele?" - lembra a mãe biológica, que é arquiteta.
Entenda o que é maternidade socioafetiva
A juíza Anaísa Accorsi Peruffo, da Vara de Família do Foro Regional do Partenon, reconheceu a maternidade socioafetiva (aquela em que a relação de parentesco é baseada na afetividade, e não na relação genética) da outra mãe de Carolina, que é chefe de cozinha. Nos próximos dias, os documentos de identidade da criança receberão nome e sobrenome das duas mães.
- Estamos muito felizes. É um caminho que tu trilhas em várias etapas. Essa foi a final, para resguardar nossa filha em todos os aspectos, emocional e juridicamente também - comemorou a mãe biológica em entrevista por telefone.
Defensoras do reconhecimento de relacionamentos homoafetivos e de seus filhos, as duas mães preferem manter seus nomes em sigilo para não expor a filha - que, até hoje, não sofreu preconceito. A gravidez foi planejada a partir de um acordo entre as duas mulheres e o ex-namorado de uma delas: ele não seria pai, mas um caminho para que elas fossem mães.
- Nós duas sempre quisemos ser mães, e o ex, com o qual mantenho amizade, não se opôs a gerar a criança. Foi apenas um doador - conta a arquiteta.
O acordo foi verbal, nada documentado. Genitor e filha se conhecem, mas não convivem, pois não há vontade de nenhuma das partes. A advogada Fernanda Pacheco Nácul, que trabalhou no caso com o sócio André Melecchi de Oliveira Freitas, diz que a existência de um pai biológico conhecido exigiu cuidados jurídicos maiores.
- Existe jurisprudência para casos de inseminação artificial, de doação de óvulo, mas este tem a peculiaridade de um terceiro envolvido. Achei que seria mais difícil por isso, que fosse questionado muito a convivência do pai ou a ausência dela, mas a juíza entendeu a situação que já existia e atentou pelo bem da menor - destaca Fernanda.
Juiz concede o direito de duas mães e um pai constarem na certidão de nascimento de recém-nascido em Santa Maria
Nos trabalhos escolares, Carolina nunca assinava só seu sobrenome da certidão: escolheu a ordem das famílias maternas e colocava sempre as duas nas tarefas. Além de ter a vontade da menina atendida, a decisão traz consigo direitos para mãe socioafetiva.
- A mãe não biológica leva a filha para o inglês, para a escola, para a aula de piano, mas, legalmente, não tinha direito algum. Qualquer coisa que acontecesse, como um acidente, por exemplo, ela não seria nada - observa a advogada.
Entre os direitos agora adquiridos, estão desde poder responder pela menina até, em caso de separação das mães, poder ter guarda compartilhada e pensão alimentícia.
*O nome foi trocado para preservar a identidade da menina, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente.