Imagens: Félix Zucco e Marcelo Oliveira / Edição: Bárbara Müller
Negar abrigo a animais abandonados não era uma opção para Maria Edi Goldschmidt, 64 anos. O amor excessivo pelos bichos acabou sem freios nas últimas duas décadas, e na casa da costureira aposentada, em Porto Alegre, o número de cães e gatos só aumentava: chegou perto de 200. Maria Edi, hoje em tratamento, se encaixa no Transtorno de Acumulação de Animais - tema de estudo pioneiro realizado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) em parceria com Ministério Público Estadual (MP-RS) e Secretaria Especial dos Direitos Animais (Seda) da Capital.
Em julho, o grupo de pesquisa Avaliação, Reabilitação e Interação Humano-Animal (ARIHA), da PUCRS, deu início ao levantamento que pretende identificar as características dos acumuladores da cidade, em termos cognitivos, de personalidade e de psicopatologia. Dados recentes da Seda apontam pelo menos 75 casos da doença.
- Entender o quadro dessas pessoas vai possibilitar a criação de uma estratégia de tratamento adequada - afirma Tatiana Irigaray, coordenadora do grupo e professora do curso de pós-graduação em Psicologia da PUCRS.
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Com o lançamento da última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5) pela Associação Americana de Psiquiatria, em 2013, essa psicopatologia ganhou uma categoria própria - antes, era apenas um sintoma do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e, agora, é considerada uma manifestação especial do Transtorno de Acumulação. O número limitado de publicações e pesquisas científicas sobre o tema dificulta uma compreensão mais aprofundada do quadro.
- À primeira vista, temos impressão de que essas pessoas apresentam outros transtornos além da acumulação, como depressão e ansiedade. Também demostram dificuldade de se relacionar. Precisamos conhecer mais para traçar esse perfil - diz Tatiana, que comandará a pesquisa até 2017.
Acumuladores precisam de acompanhando psicológico
Desde sua criação, há quatro anos, a Seda está acompanhando pessoas que convivem com a doença em Porto Alegre. No ano passado, foi criado o Grupo de Trabalho (GT) Prevenção ao Colecionismo de Animais. Para mapear os casos, a secretaria se baseia principalmente nas definições do especialista Randy Frost, doutor em psicologia do Smith College, nos Estados Unidos. Ser incapaz de colocar um limite no número de animais, deixá-los em espaços físicos inapropriados (sem higiene, por exemplo), não ter condições de fornecer cuidados básicos e perder o senso de crítico sobre a sua situação fazem parte do perfil.
- Eles deixam de lado a sua identidade e passam a se dedicar só aos animais de uma maneira obsessiva. As pessoas ficam conhecidas nas imediações por apelidos depreciativos. São agredidas verbalmente e passam pelas mais diversas situações de constrangimento - relata Fabiane Tomazi Borba, assessora jurídica da Seda e integrante do grupo de trabalho liderado pela secretaria.
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Quem sofre com a doença geralmente acredita ser um protetor dos bichos, mas há uma grande diferença: o empenho em doar. O cuidador pode até se apegar emocionalmente, porém, sabe que o objetivo é dar um lar ao animal. Já o acumulador sofre para entregar seus gatos e cachorros, apresentando resistência se aparece alguém interessado.
- A sistemática é resgatar, tratar e disponibilizar para a adoção. Os protetores sabem as suas limitações e têm noção dos seus recursos. A ideia é fazer uma corrente do bem. Os acumuladores não conseguem - explica Fabiane.
Admitir o problema é uma atitude rara entre os acumuladores. Não conseguir mais dormir, sair de casa e manter uma higiene básica na residência são questões encaradas com normalidade. E a situação insalubre incomoda também a vizinhança: o mau cheiro e o barulho acabam como denúncias ao poder público.
- Geralmente, chegamos aos casos por meio de denúncias de vizinhos que se sentem incomodados com a situação. O barulho e o mau cheiro são as principais reclamações - conta Fabiane.
A Seda costuma acompanhar as situação de perto, com visitas regulares. Se o dono permitir, a secretaria oferece cuidados veterinários aos animais, castração e ajuda psicológica ao acumulador. A mainoria não aceita seguir no tratamento de saúde, o que leva ao retorno do problema. A remoção dos bichos não é prioridade e só pode ser feita por meio de ordem judicial.
- Eles acabam voltando a pegar animais se não há auxílio especializado. O estudo vai ajudar a determinar uma estratégia de tratamento para essas pessoas. Os acumuladores não são cruéis, é tudo fruto do transtorno. Para eles, aquilo não significa maus tratos - diz Fabiane.
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"É um sacrifício, mas eu gosto"
Ver animais sendo maltratados ou passando necessidades sempre gerou um sofrimento intenso para Paulo Antonio Amaral da Silva, 53 anos. No anos 1980, a casa da família já era refúgio para os bichos da comunidade que precisavam de carinho e atenção. Mas a vontade do reciclador de se dedicar para um número fora de comum de cães e gatos começou nos últimos 20 anos, com a mudança do centro da Capital para o bairro Restinga.
- É um sacrifício, mas eu gosto. Sempre amei os animais. Tem gente que opta por cuidar de crianças ou velhos. Eu escolhi os bichos - afirma Silva, que é solteiro e mora sozinho.
A peça simples em que vive (banheiro e um conjugado de quarto e cozinha) conta com um pátio pequeno. Materiais de construção, de reciclagem, poucos móveis e os animais dividem o espaço. Os filhotes geralmente ficam dentro da residência, por todos os lados: em cima da pia, da cama e do armário. Fezes e urina também não têm lugar certo - e surgem a todo instante. A maior parte dos bichos foi pega por Paulo das ruas e, como a comida é escassa, às vezes ele deixa de se alimentar para beneficiar os animais. Com o aumento no número de bichos, as saídas de casa ficaram cada dia mais restritas, porque é comum ocorrer briga com morte entre os cães. Na opinião dele, sua missão é quase divina:
- Tenho um relacionamento com Deus e Jesus e, às vezes, eles me colocam em um caminho diferente só para encontrar um bicho.
No fim do ano passado, a Seda removeu os animais da casa de Silva. O combinado era ficar com apenas cinco. Hoje, o local já abriga mais de 30 animais novamente.
- Estou em um desgaste emocional muito grande por causa da retirada. Não sou doente, só quero me dedicar a eles.
"Era como se fossem meus filhos, mas eu já não dava mais conta"
Houve épocas em que não dava enxergar o chão na casa de Maria Edi Goldschmidt. O pátio e a parte interna da residência, na Capital, estavam tomados por gatos e cachorros - mais de 150, pelas contas da costureira aposentada. Por mais que limpasse, a sujeira nunca terminava. À noite, ela não tinha sossego: acordava de 10 a 15 vezes para acalmar os bichos e não incomodar os vizinhos.
- Era como se fossem meus filhos, mas eu já não dava mais conta - confessa.
Maria Edi sempre gostou de animais, desde a infância no interior do Estado. Trazia bichos da rua para cuidar em casa, o que rendia algumas surras dos pais. Quando veio trabalhar na Capital, continuou com o mesmo amor, alimentando animais da rua. No início dos anos 1990, adotou sua primeira cadela, que teve filhotes. Logo depois, comoveu-se com outra cadela grávida e, a partir daí, o número só começou a crescer. Alguns a própria Maria Edi juntava da rua, enquanto outros eram largados em frente a casa.
- Jogavam muitos filhotes no meu pátio. Eu também pegava alguns da rua e foi aumentando. As pessoas acham que doar é fácil, mas ninguém quer - lamenta.
Na mesma época, Maria Edi teve depressão após a perda do emprego. O número elevado de cães e gatos levou a destruição dos móveis. Dormir não era mais necessidade, mas artigo de luxo. Durante a noite, devido ao barulho, não conseguia descansar. Sair de casa também era exceção:
- Eu era xingada pelas pessoas. Ficavam gritando coisas na frente da minha casa. Todo mundo me denunciava e fazia abaixo-assinado.
Com o número elevado de bichos, as idas ao veterinário não existiam. Alguns sacos de ração vinham por doação, o que minimizava os gastos mensais que chegavam perto dos R$ 2 mil. Outro problema era o canibalismo: se aparecia um filhote novo, por muitas vezes era atacado e acabava morrendo.
Mas esse quadro não levou Maria Edi a recuar - a casa estava sempre aberta para receber. Ela não era contra a doação, mas o apego atrapalhava.
- Acho que era por causa do amor. Os animais não queriam ir. Eu até colocava defeito na hora de levar - admite.
Depois de inúmeras denúncias e visitas da Seda, a aposentada repensou a vida que levava. Decidiu dar uma chance ao tratamento psicológico e segue firme há cerca de dois anos. No início de 2015, ocorreu a retirada de mais de uma centena de animais. Hoje, ela só tem três: as cadelas Poliana e Chuvinha e o gato Mimi.
- A psicóloga me ajudou a enxergar que eles ficariam melhor e eu, também. Mas foi um sofrimento. Domingo ainda é um dia muito difícil. Acho que é por causa do silêncio.
Preste atenção
Fique de olho em algumas características que podem estar ligadas a doença
- Incapacidade de colocar um limite no número de animais
- Manter um número de bichos em desacordo com a lei e em espaços físicos insuficientes e inapropriados a albergagem
- Não conseguir dar o mínimo de condições de vida aos bichos, tais como alimentos adequados, água, cuidados veterinários e higienização do ambiente e do animal
- Não admitir a própria incapacidade de cuidar minimamente dos animais e não perceber o impacto negativo em sua saúde e bem-estar, além do incômodo a pessoas próximas
- Incapacidade de agir sobre a deterioração das condições dos animais ou do ambiente (já que não há móveis, dormir em cima da mesa passa a ser normal, por exemplo)
- É resistente em doar os animais (a principal diferença do protetor para o acumulador)
Fonte: Seda