Era 1995 quando, despretensiosamente, o recém-graduado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Helquer Paez resolveu montar sua companhia teatral. Um dos primeiros grupos nascidos dentro do meio acadêmico, na cidade, mantinha a força e a vivacidade de um universitário que queria colocar o bloco na rua e mostrar sua arte.
Foi com o espetáculo de formatura, Goiabada com Queijo - uma releitura de Romeu e Julieta, contada por clowns - que Helquer conseguiu investir na prática do teatro, decidindo, de vez, estar em cima dos palcos. Esse foi, segundo o fundador do grupo, o primeiro espetáculo de clowns em Santa Maria, e o início da história da Cia Retalhos de Teatro - que, neste ano, completa 20 anos de estrada. Na época, a universidade não tinha módulo para ensino da técnica dos clowns, e o aprendizado veio por meio de filmes.
- Já havia peças com palhaços, claro, mas não com a figura do clown, a exemplo de Charles Chaplin, O Gordo e o Magro, algumas das minhas inspirações - conta o diretor e fundador da companhia.
No elenco de Goiabada com Queijo, ainda estavam Joice Aglae Brondani, Fernando Michellotti, Camilo Scandolara, Daniela Varotto, Esmeralda Frizzo, Luiz Fernando Marques, Josilene Maders, Lucia Royes Nunes e Jarbas Parise. A estreia da época foi em duas sessões no Hotel Itaimbé: a primeira reuniu mais de 1,2 mil pessoas na plateia, e a segunda, 870 espectadores.
Esse pontapé, sem a intenção de alcançar um sucesso arrebatador - mas chegando nele, inevitavelmente - teve um resultado surpreendente. Foram mais de 30 apresentações de Goiabada com Queijo pelo Estado, por outras cidades do Brasil, como São Paulo, e até em Montevidéu, no Uruguai.
Os três primeiros anos da Retalhos chegaram até a assustar os integrantes, recém saídos das salas de aula da faculdade. Viagens e festivais fizeram parte da rotina do grupo. Hoje, Helquer garante que esses foram os melhores momentos da companhia:
- Esses três primeiros anos me deram força para seguir até hoje.
A companhia hoje é composta por Julio César Aranda (a partir da esq.), Karina Maia, Rafael Jacinto, Jeferson Ilha, Juliet Castaldello, Alexia Karla (atriz convidada), Janaina Castaldello, Débora Matiuzzi e Helquer Paez
Denso, puro e corajoso
As montagens do grupo trazem desde espetáculos infantis e romances até trabalhos que envolvem polêmicas e uma temática social - com textos de Nelson Rodrigues e Maurice Maeterlinck, por exemplo. A característica da Cia Retalhos envolve um trabalho que trata o teatro de forma pura, densa, visceral e, muitas vezes, corajosa. É assim que alguns integrantes da companhia definem o trabalho do diretor e fundador do grupo.
- Ele é resistente, ousado, enfrenta, vai em busca do teatro puro. Não tem medo de mostrar o corpo, a crueldade, a violência - define a atriz Karina Maia, que participa do grupo desde 2008, e que entrou na companhia com a montagem O Anjo Negro, de Nelson Rodrigues.
E é assim que a Retalhos seguiu e sobreviveu, no decorrer de seus 20 aniversários. Não há o receio em trabalhar em cima de textos com assuntos espinhosos, como é o caso da nova estreia do grupo, Os Sete Gatinhos, também baseado em Nelson Rodrigues.
O histórico de trabalhos revela que uma versatilidade imensa marca a companhia. Até um curta-metragem que mostra a prostituição de travestis está na lista. O curta Às Seis Horas da Tarde, exibido em 2011 no Santa Maria Vídeo e Cinema (SMVC), recebeu os prêmios de melhor ator, para Helquer, melhor trilha sonora original e melhor direção de arte.
Uma história que se faz em partes que se unem
O espetáculo Goiabada com Queijo, que ficou em cartaz por três anos, foi apenas o começo de uma série de trabalhos que seriam realizados pela companhia. Nos retalhos que se fizeram nestes 20 anos de história, estão contabilizados 30 espetáculos - incluindo montagens em segunda edição e projetos culturais -, e mais de 150 prêmios em festivais pelo Brasil afora.
A partir de 2000, a companhia foi criando uma identidade mais forte, em vez de apenas seguir em espetáculos com linha mais popular e nos espetáculos infantis que apresentava até então. Um trabalho deste período teve um destaque interessante. A montagem Os Cegos, inspirada no texto homônimo de Maurice Maeterlinck, produzida em 2002, chegou a entrar no circuito de nove festivais, e recebeu 50 prêmios em apenas um ano.
Para Julieno Vasconcellos, ex-integrante do grupo, foi um momento marcante:
- O grande trabalho que fiz na Retalhos em oito anos que estive no grupo foi Os Cegos. Era, na verdade, minha grande escola. Boa parte do que aprendi dentro da área teatral foi ali. Aí que comecei a dirigir espetáculos teatrais.
Dificuldades e superação
Por ser uma companhia formada por estudantes das Artes Cênicas, muita gente passou pela Retalhos. Mas houve um momento em que Helquer - o único remanescente da companhia - viu-se sozinho dentro do seu próprio grupo. Foi em 2000, quando todos os integrantes saíram para fazer outras atividades.
- Eu me vi sozinho, mas falei que não ia largar a companhia. Na verdade, nunca quis ir embora de Santa Maria. Foi nessa época que pensei que seria o momento de investir em um trabalho meu, e montei o meu monólogo - relembra Helquer.
A Casa de Asterion, com texto de Jorge Luis Borges, foi montada em 2001. O momento de medo e receio por ser o único ator de sua própria companhia se transformou em redenção.
Naquele mesmo ano, o diretor levou seu trabalho para o 5º Festival Nacional de Monólogos de Marília (Fetalpa), em São Paulo. Saiu de lá com praticamente todos os prêmios no festival: melhor espetáculo, melhor maquiagem, melhor direção, melhor sonoplastia, iluminação, cenografia e melhor ator.
Outro período pareceu decisivo para a trajetória da companhia. Foi quando o grupo estreou na esfera audiovisual. Em 2009, o curta-metragem Às Seis Horas da Tarde foi resultado de um momento de reflexão, em que Helquer sentia que precisava tirar alguns preconceitos e fazer algo diferente.
Para a preparação de sua personagem, uma transexual, o diretor chegou a acompanhar o trabalho e as noites de travestis em Santa Maria para entrar no universo do personagem. Segundo Helquer, o curta serviu para imortalizar o trabalho do grupo.
Nelson Rodrigues, uma paixão
Uma afeição especial pelo cronista e teatrólogo brasileiro Nelson Rodrigues, nutrida por Helquer, faz a Cia Retalhos lançar, neste ano, o seu quinto espetáculo com textos do autor.
- Para mim, o Nelson Rodrigues foi e sempre será um dos maiores dramaturgos brasileiros, que consegue provocar, com sua arte crua e metafórica, o submundo que está escondido em cada um de nós - justifica Helquer.
Os Sete Gatinhos é a mais nova montagem do grupo - que estreou em Santo Ângelo, no último dia 4, no Festival Cidade dos Anjos. Em Santa Maria, a estreia está marcada para agosto, dentro do projeto Treze: O Palco da Cultura. A ideia da nova montagem surgiu ainda no ano passado, como espetáculo comemorativo aos 20 anos do grupo.
A história se desenvolve no núcleo da família do Sr. Noronha (Julio Cesar Aranda). O casal tem cinco filhas, e quatro delas se prostituem, menos a caçula, Silene (Laís Jacques Marques), que é virgem. O desenrolar da história acaba mostrando que nem tudo é o que parece, e acaba evidencindo um outro lado da família, que vai além das aparências, desmascarando falsas alegrias.
- Esse texto, para mim, é o mais cruel. A concepção é praticamente igual, não adaptamos quase nada. Já trabalhei com esse texto em uma escola, mas não pude montar com tudo que eu gostaria. A peça bebe muito em Dante, tratando do purgatório, o inferno e o paraíso. Em alguns momentos, durante o ensaio, temos crises de choro, perdemos o sono - conta Helquer.
Para a montagem, quatro atrizes convidadas fazem parte do elenco: Rafaela Drey Costa, Ísis Peres, Lais Jacques Marques e Alexia Carla. A trilha sonora do espetáculo é de Adriano Zuli e Vinicius Bertolo.
A companhia também já encenou outros quatro espetáculos baseados nos textos A Serpente (2004), O Beijo no Asfalto (2006 e 2007), Anjo Negro (2008) e Doroteia (2009 e 2010).
Plateia, alunos e colegas
Boa parte do elenco que passou pela Retalhos já conhecia seu diretor antes de entrar na companhia. Seja em outros espetáculos ou conhecendo-o como professor, na LuzArte Escola de Teatro, escola técnica profissionalizante que funcionava em Santa Maria, em 2004. Jeferson Ilha, o segundo integrante mais antigo do grupo - atrás apenas do fundador - conheceu o diretor no primeiro espetáculo que assistiu na cidade. A ex-integrante Fernanda Hartman, que hoje mora em São Paulo, foi sua aluna.
- Eu assisti Goiabada com Queijo no Hotel Morotin, quando ainda era adolescente. Foram momentos muito marcantes. Alguns anos mais tarde, eu vim trabalhar com Helquer. Ele foi meu professor, e, depois, meu diretor e colega de grupo - comenta Fernanda.
Coletivos unidos
Nos primeiros anos da Retalhos, era difícil trabalhar em parcerias. Os poucos grupos de teatro que se consolidavam na cidade se tratavam como rivais.
- Os integrantes de um grupo não podiam assistir peças de outros grupos, sob pena de serem expulsos - comenta Helquer.
Mas, se há 15 anos havia rivalidade, hoje, sobram parcerias. Por isso, o grupo tem espetáculos feitos em conjunto com o Teatro Por Que Não? - como No Fio da Navalha (2011) -, que também saiu de dentro da UFSM.
- Hoje, tudo se mistura. Há o respeito, e não a concorrência - comenta Juliet Castaldello, integrante do Teatro Por Que Não e também da Cia Retalhos.
O Passageiros da Alegria - que leva o teatro até escolas, hospitais, ônibus e na rua - destaca-se no grupo como um projeto que começou lá em 2001, e ainda segue na ativa, levando a arte da Retalhos a vários lugares da cidade e atingindo centenas de pessoas.
Retalhos pelo mundo
Se tem uma palavra que pode definir a Cia Retalhos, é transição. Foi nesse grupo que muitos atores, hoje reconhecidos, deram seus primeiros passos na arte. Helquer Paez estima que pelo menos 60 atores tenham cruzado pelo grupo, seja como integrantes fixos, seja como atores convidados nesses 20 anos.
Grande parte de seus integrantes estava no meio do curso de Artes Cênicas quando começou a fazer parte do grupo. Hoje, ex-Retalhos estão por várias partes do Brasil, não só em Santa Maria. O ator Rafael Seig, que se formou em Santa Maria, passou quatro anos na companhia. Hoje, mora no Rio de Janeiro e faz participações em novelas da Rede Globo. Fernanda Hartman, atriz que conviveu com a companhia por sete anos, hoje mora em São Paulo, onde dá aulas de teatro e faz parte do elenco de uma companhia teatral.
Leia aqui os depoimentos de ex-integrantes da Cia Retalhos de Teatro