Não faz muito tempo, a farmacêutica Juliane Mattiazzi, 25 anos, mudou-se para as proximidades de um dos cruzamentos mais movimentados da área central de Santa Maria. O barulho do vai e vem de carros, ônibus e motos, porém, diminui na mesma velocidade em que o elevador do edifício onde mora sobe. E é lá, em meio ao silêncio que se mistura à vista privilegiada de quem habita o alto de um sétimo andar, que a jovem transforma as angústias do dia a dia em cores.
Fisgada pela publicidade gratuita das redes sociais, Juliane resolveu ir à livraria. Saiu de lá com um livro que não continha muitas palavras, mas vinha recheado de imagens para colorir. Desde então, a jovem, que se diz avessa a modismos, foi absorvida pela mais nova onda do mercado literário: os livros de colorir para adultos. E ela não está sozinha nessa.
Foto: Ronald Mendes / Agência RBS
Essas obras encontraram um espaço inusitado nas prateleiras de livrarias mundo afora e se tornaram um viral entre pessoas das mais diversas idades. Jardim Secreto - Livro de Colorir e Caça ao Tesouro Antiestresse, título escolhido por Juliane, já vendeu mais de 1,5 milhão de cópias no mundo. Não por acaso, é uma das apostas de vendas da 42ª edição da Feira do Livro de Santa Maria.
- A cada cinco livros vendidos, três são de pintura. Quem comprou volta à loja para levar outro exemplar para presentar amigos e parentes. Estimamos que esse seja o boom da feira deste ano - avalia Daniela Kliemann, 39 anos, sóciaproprietária da Athena Livraria, de Santa Maria.
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Ao contrário de clássicos como Alice no País das Maravilhas - título que estampa uma das peças publicitárias que anunciam a chegada de mais uma festa literária na cidade - esses livros para adultos colorir não trazem histórias inesquecíveis. Isso não significa, no entanto, que assim como o tema da campanha sugere, eles não sejam capazes de levar o leitor a mundos desconhecidos a cada nova página virada.
Seja por seu efeito antiestresse ou simplesmente pelo prazer de retomar um hábito perdido com o passar do tempo, o certo é que esse nicho leva seus adeptos para longe do preto e branco das preocupações cotidianas.
Proposta antiestresse
Há quase uma década, Juliane Mattiazzi, 25 anos, trocou Santa Rosa por Santa Maria com a intenção de seguir os estudos. Após completar o Ensino Médio, a jovem se formou no curso de Farmácia da UFSM e engatou um mestrado. Atualmente, divide seu tempo entre um doutorado na área e o emprego em uma farmácia local. Em meio a esse dia a dia atribulado, natural que as poucas horas vagas sejam destinadas ao descanso, físico e mental.
E foi por meio das redes sociais que Juliane se deparou com um remédio para o estresse cotidiano. Ela conta que viu várias conhecidas postando fotos de suas "obras" e falando sobre os tais livros de colorir para adultos. Curiosa, descobriu na internet que os leitores estavam encarando as obras como algo terapêutico. Era o que faltava para aderir à moda.
- Comprei esperando que realmente me ajudasse a relaxar, desligar um pouquinho. Quando estou pintando, fico focada só nisso, não penso em outras coisas. Não tenho muitos momentos nos quais eu possa dedicar a mim, e acho que isso vai virar um hobby - comenta a farmacêutica.
Especialistas afirmam que o mecanismo antiestresse do livro se dá por meio da produção de endorfina pelo corpo, desencadeada no momento em que o indivíduo se envolve em alguma atividade prazerosa. Para Bruna Rodrigues Maziero, coordenadora do curso de Terapia Ocupacional da Unifra, o livro pode, sim, trazer benefícios.
- A correria do cotidiano é envolta de muitos tensionamentos e atravessamentos, seja pela família, trabalho ou redes sociais. Quando o velho conhecido lápis e papel nos é oferecido, surge um momento que poderá trazer, além dos benefícios cognitivos mais claros (melhora da atenção, memória, percepção), um conforto e uma organização psíquica, na forma de relaxamento, calmaria e alívio das tensões - explica Bruna.
Johanna Basford / Divulgação
Sonia Tommasi, psicóloga e coordenadora de curso de Arteterapia do Centro Sul Brasileiro de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação (Censupeg), diz ainda que, no momento em que exercitamos nossa criatividade, ultrapassamos os limites que nos são impostos pela educação, sociedade e família. A especialista, porém, faz uma ressalva. Ela afirma que esse tipo de expressão artística pode aliviar o estresse momentaneamente, mas não deve ser encarado como um processo arteterapêutico.
- A Arteterapia trabalha com diferentes materiais e técnicas que provocam a reflexão sobre a vida e a forma de viver. Ela está sendo utilizada em várias situações, tais como estresse, autoconhecimento, saúde mental e criatividade, entre outros, justamente para colaborar no desenvolvimento do ser humano em sua totalidade psíquica, cognitiva e afetiva, para tornar o humano mais humano - explica.
Ritual que desfaz padrões
Pelo menos uma hora por dia, geralmente após sair do trabalho, Juliane abre as janelas do apartamento onde mora às vezes com música, outras em silêncio, e começa a colorir. Bruna explica que essa rotina, criada em torno do processo de pintura, atividade lúdica e estruturada, também contribui para a sensação de relaxamento.
- É preciso, num primeiro momento, organizar o local e os materiais que vão ser utilizados: lápis, canetas, tintas. Depois, durante a pintura poderá ocorrer um desligamento de todo o ritmo que o mundo moderno nos impõe, até mesmo das tecnologias - comenta a terapeuta ocupacional.
Além de acalmá-la, esse distanciamento do mundo externo fez com que Juliane experimentasse outras sensações. Ao mesmo tempo em que achou uma utilidade para os antigos lápis de cor - que na última mudança quase foram parar no lixo - vivenciou "uma coisa meio lúdica da infância". A terapeuta ocupacional afirma que, para alguns, a atividade pode ser percebida como "um momento de descoberta, de criar ou deixar vir à tona habilidades subjetivas".
- Acho que não existe uma coruja com penas azuis, mas eu a colori dessa forma. Acho que é esse o objetivo: te livrar de padrões, de estereótipos. Pois criança não tem isso, né? Ela pinta com a cor que ela quer e acho que a gente tem de usar nossa imaginação. Não tem um certo e errado - conclui Juliane.
A chave do sucesso
"Você vai ver que isso é uma cachaça. Depois que a gente começa não consegue mais parar". A frase proferida por um senhora enquanto Juliane aguardava na fila do caixa para comprar seu livro de colorir dá uma ideia do sucesso desse tipo de publicação.
Esses livros ganharam fama recentemente graças à ilustradora escocesa Johanna Basford. Quando lançou Jardim Secreto, em 2013, a autora tinha a expectativa de alcançar um pequeno nicho. Dois anos depois, a obra, que traz 96 páginas de desenhos ricos em detalhes, elaborados a mão e prontos para ganhar cores, já vendeu mais de 1,5 milhão de cópias ao redor do mundo.
Segundo Nana Vaz de Castro, gerente de aquisições da Editora Sextante, responsável pela publicação do título no Brasil, desde que chegou ao mercado nacional, em novembro do ano passado, já vendeu mais de 100 mil exemplares e está indo para oitava reimpressão.
Questionada sobre ao que atribui tamanho sucesso de vendas, Nana diz que a sensação é de que o livro funciona "como uma espécie de antídoto para o dia a dia frenético que vivemos".
- Quanto sentamos com nosso livro e uma caixa de lápis de cor, de certa forma, nosso universo passa a se restringir apenas àquilo, e a decisão mais importante a tomar é "que tom de verde devo usar agora?" - comenta Nana.
Para a psicóloga Sonia Tommasi, a chave para o sucesso desse tipo de publicação passa justamente pela compreensão das atuais necessidades da psique humana. A especialista argumenta que, a cada dia estamos menos humanos, sem espaço para as relações interpessoais, emoções e sentimentos, o que torna a vida mais rude e difícil.
- Até o amor tornou-se fluídico e rotativo. Nossa atenção e concentração estão fixadas no celular, no computador, nos quais temos de apertar botões para obter resultados. O processo criativo está bloqueado, inativo, mas não deixou de existir. A criatividade possui energia que pulsa, mesmo sendo ignorada e banida do dia a dia - avalia Sonia.
Fenômeno nas livrarias locais
Seja pela busca de uma solução para o tédio ou por um remédio para o estresse cotidiano, o certo é os livros para colorir caíram também no gosto dos santa-marienses. Celso da Silva Schimdt, 54 anos, que trabalha na Livraria da Mente há 25 anos, resume o fenômeno como "uma loucura fora do normal". Segundo ele, em menos de dois dias, foram vendidos 200 cópias de Jardim Secreto e há uma lista para quem espera a chegada de novos títulos. A procura por lápis também aumentou. As caixas com 48 cores, por exemplo, estão em falta.
- Até pedi para o pessoal colocar os lápis ao lado do livro. Assim, quem compra a obra, vê o lápis e já leva uma caixa. O que sobrou da volta às aulas já foi tudo - diz.
Denise Xavier Calil, 56 anos, funcionária da Livraria Nobel, conta que já esgotaram o estoque da loja inúmeras vezes. Segundo ela, a procura é tão grande que o estabelecimento precisou entrar numa lista de espera na distribuidora para fazer novo pedido.
- O Floresta Encantada nem esquentou lugar na prateleira - revela Denise.
A sócia-proprietária da Athena Livraria Daniela Kliemann, 39 anos, disse não ter certeza se o estoque iria durar até o final de semana. A loja, que também conta com os títulos Fantasia Celta e Jardim Encantado, ambos da editora Alaude, chegou a vender, em um mesmo dia, 100 exemplares dos livros Jardim Secreto e Floresta Encantada, da Sextante. Os títulos que caíram no gosto popular custam, em média, R$ 29,90.