Poucos conhecem as hidrovias que chegam e partem de Porto Alegre tão bem quanto Amaro Vasconcellos de Paiva. As quase cinco décadas de navegação pelos 10 mil quilômetros quadrados de superfície lhe conferiram a precisão de uma carta náutica. Bancos de areia, meandros, profundidades, perigos e riquezas. Nenhum detalhe lhe escapa. Nestas águas, ele é Seu Paiva. Aos 78 anos, o decano da praticagem na Lagoa dos Patos.
Sua função é controlar os rumos de embarcações que se aventuram pela laguna. Como os comandantes de navios estrangeiros que ali chegam nada conhecem da geografia local, é Paiva - e os outros sete práticos da Associação de Praticagem da Lagoa dos Patos, fundada em 1º de maio de 1935 - quem aconselha a autoridade máxima da embarcação e dá as coordenadas ao timoneiro.
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- O prático precisa ser "safa-onça", saber os caminhos, conhecer os canais. O comandante estrangeiro não conhece as hidrovias da região. A função do prático, então, é guiá-lo por águas desconhecidas - explica o navegador.
E essa era a missão a ser cumprida, na quinta-feira, dia 23 de abril, quando embarcou em um rebocador, no Cais do Porto, em Porto Alegre, rumo ao Terminal Santa Clara, em Triunfo. Nesta ponta do Rio Jacuí, localizada ao lado do polo petroquímico da Braskem, estava um navio com bandeira de Cingapura.
Carregado com 1,9 mil toneladas de butadieno (gás cuja principal aplicação está na produção de borrachas sintéticas), ele aguardava a orientação de Paiva para ser desatracado dali e ancorado em uma área de fundeio a cinco quilômetros do terminal - local de onde, dias depois, iniciaria sua navegação rumo a Rio Grande.
Às 11h30min, uma hora após saírem da Capital a bordo do rebocador Pedro Marques, Paiva e mais três navegadores (o comandante, o oficial de máquinas e o marinheiro) encostaram a pequena embarcação ao lado do costado do navio estrangeiro. De colete salva-vidas, luvas isolantes e calçados antiderrapantes, o veterano dos práticos enfrentou a escada de quebra-peito, sem sinalizar qualquer cansaço porventura imposto pela idade.
Seis metros acima, retirou as luvas e, em inglês, cumprimentou o timoneiro e parte da tripulação que o aguardava. Por eles, foi conduzido, então, até a ponte de comando, de onde ordenaria os movimentos da embarcação.
- Good afternoon, captain! (Boa tarde, capitão!) - saudou Paiva o capitão filipino Alex Reyes, que o esperava à porta da cabine.
Sem deixar a formalidade de lado, Paiva foi logo puxando o apito e o rádio VHF, com o qual se comunicaria com o rebocador que o havia conduzido até ali e outro, o Cardiff, que já estava no terminal. Deixou bolsa e colete salva-vidas de lado e, do lado de fora do navio, deu início às primeiras ordens com o estridente sinal do apito.
Os funcionários do píer II deveriam, naquele momento, soltar aos poucos os cabos (é feio chamá-los de cordas), dando início à desatracação. De volta à sala do comando, de olho pela vigia (não é educado compará-la com uma janela), puxou o rádio e se comunicou com os rebocadores:
- Abrindo a proa, Pedro Marques. Cardiff, parado.
O navio se deslocou tranquilamente, mirando o centro do canal. Quando confirmou que a distância da embarcação era a mesma em relação às duas margens, Paiva sugeriu ao comandante:
- Let´s go ahead, captain? (Vamos em frente?).
E contatou novamente os rebocadores.
- Pedro Marques, escutando bem?
- Oi, seu Paiva. Escutando bem.
- Vamos largando.
À frente, estava uma hora de viagem em linha reta pelos cinco quilômetros do canal.
A velocidade foi indicada ao comandante e impressa ao navio pelo timoneiro.
- Agora é como a vida: devagar e sempre, respeitando a natureza - analisou o homem que se orgulha de ter encalhado apenas quatro vezes nos tantos anos de profissão.
Com parte da missão já realizada, Paiva chamou o 1º oficial e pediu um café. Da inseparável bolsa de couro já gasto, o prático tirou um caderno de capa dura - um das dezenas de diários de bordo que guarda. Tirou uma caneta azul, a cor dos dias de semana (no sábado, é verde; no domingo, vermelho), e passou a anotar detalhes da tarefa que cumpria: nome da embarcação, horários, latitude, longitude.
Fosse mais tarde, dedicaria-se ainda ao pôr do sol. E ao lado do "astro maior", desenhados com olhos e nariz, acrescentaria notas úteis ao dia seguinte. Fazem parte de seu trabalho breves pitacos na meteorologia.
- Tem de estar de olho no barômetro, no termômetro, no vento e nos fenômenos climáticos. Nestes meses que seguem, por exemplo, tem muito nevoeiro. E como diz o velho marinheiro, quando vem o nevoeiro, toca o barco devagar - poetizou.
O velho marinheiro hoje é ele. Parrucho, como se define (uma mistura entre sua origem paraense com gaúcho), iniciou a vida de navegador na Escola Mercante do Estado do Pará. Após três anos de aulas, embarcou por quase uma década como membro da Frota Nacional dos Petroleiros. Percorreu a costa brasileira, o Mar do Caribe e parou no Rio Grande do Sul "a mando do destino". Amparado pelas memórias, tem a convicção de que ainda não é hora de parar:
- Não pretendo parar tão cedo. Vou ficar fazendo o quê? Ficar jogado no sofá? Estou enxergando bem e até faço ginástica.
Na última quinta-feira, Paiva ajudou a desatracar do Terminal Santa Clara, em Triunfo, e ancorar em uma área de fundeio um navio com bandeira de Cingapura
Se filho de prático, prático fosse, os três filhos de Paiva teriam de ter nível superior em qualquer área, habilitação de mestre-amador, conhecimentos de inglês e, a partir do processo seletivo da Marinha do Brasil, conquistar uma vaga no curso de "praticante de prático". Com certificado em mãos, então práticos, trabalhariam como profissionais liberais e ganhariam algo em torno de R$ 20 mil mensais, caso atuassem na Lagos dos Patos (em alguns locais do país, como no Maranhão, o valor pode passar dos R$ 100 mil por mês, mas a média no Brasil é de R$ 30 mil).
O trio não quis seguir os caminhos do pai, mas tampouco o privou de orgulho. A filha, Iara (senhora das águas, em tupi), formou-se em Direito e, no trabalho de conclusão, analisou o direito marítimo, a praticagem e a proteção ambiental.
Quando se completava quase uma hora de viagem desde o píer até a área onde o navio ficaria ancorado, Paiva indicou o local exato de fundeio, preencheu protocolos e se despediu do comandante e da tripulação. Pela mesma escada, fez o caminho inverso e acessou o Pedro Marques, que o aguardava.
As voltas à Capital já não são como antes. Do alto do rebocador, quando avistou o Cais do Porto de onde poucos o veem, Paiva lembrou-se do movimento e da vida que o local tinha no início de sua carreira:
- Ainda tem um porto, mas já não é tão alegre. Nosso problema aqui é o calado, que não aceita mais os navios dimensionados de hoje, mais altos e largos. E aí é assim: se tem navio, tem trabalho. Se não tem, fico, eu, a ver navios.
Sua rotina pode ter resolvido se acalmar, mas ainda são cerca de três viagens por semana. As mais longas, até Rio Grande, o deixam longe de casa por mais de um dia. Está tudo ali, no diário de bordo, que recebe então, quase em Porto Alegre, os últimos registros do navegador. Devolveu o caderno à bolsa e despediu-se dos tripulantes do rebocador.
Depois de cinco horas, estava de novo em terra firme. Sem pressa, Paiva entrou no carro. Ajustou o cinto e a marcha a ré. E enquanto fazia mais uma das tantas manobras daquele dia, foi, uma última vez, questionado:
- Seu Paiva, o que é mais difícil? Pilotar um navio ou um carro?
O navegador não respondeu.
- Seu Paiva, seu Paiva, tem um carro, seu Paiva, o carro... - tentou alertar a repórter.
A leve, porém estrondosa, encostadinha no veículo parado poucos metros atrás respondeu por ele. De um jeito, também, bem prático.