Na aula de Fraseologia Aeronáutica, instruções são todas em inglês
Foto: Tadeu Vilani / Agência RBS
- Bernardo, Gabriel, Guilherme... - começa a professora.
- Hi! Hello! Here! - respondem os alunos, sem hesitar.
A cena, típica de cursos de idiomas, ocorreu dias atrás em um ambiente diferente, uma aula de matemática de uma faculdade da Capital. Pode surpreender, mas a prática de usar a língua inglesa é cada vez mais comum em universidades brasileiras. Antes restrita à pós-graduação, agora afeta também estudantes que recém iniciaram a graduação. No Estado, as aulas em inglês passaram a ser oferecidas recentemente em diferentes cursos de três das principais universidades, como forma de incentivar a inserção global das instituições e de abrir portas para os alunos.
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Bernardo, Gabriel e Guilherme são estudantes matriculados na cadeira de Cálculo Numérico na Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), uma das ministradas totalmente em inglês. Se palavras como meeting e staff se tornaram comuns no cotidiano, na sala de aula eles calculam o overflow e o underflow de um sistema de ponto flutuante - misturando os sempre complicados números com um emaranhado de palavras em língua estrangeira.
- Com aula em outra língua, qualquer dispersão dificulta o aprendizado. Eles precisam ficar atentos, mas em geral já têm familiaridade com o inglês - ressalta a professora Cláudia Batistela.
Os reitores acreditam que as aulas em outro idioma são um passo importante no projeto de aumentar a visibilidade e a relevância internacional do Ensino Superior brasileiro, de estimular o intercâmbio de alunos e professores, de fomentar parcerias e de fortalecer o posicionamento do Brasil nos rankings internacionais. Por isso, estão apostando na tendência.
Mas o espaço do português está sendo preservado. A disciplina de cálculo numérico, por exemplo, é oferecida pela PUCRS em dois idiomas, e fica a cargo do aluno decidir em qual deseja aprender. Na primeira vez em que a opção foi oferecida, no ano passado, houve 12 matrículas. No semestre passado foram 10. Agora, são oito.
Na escolha, pesam, em especial, dois aspectos: o desejo de praticar o inglês e a perspectiva de aproveitar esse conhecimento para estudar no Exterior. Quem opta por abrir mão do português mergulha na língua estrangeira: as perguntas à professora, as anotações, os trabalhos e as provas, até a conversa com os colegas é feita como se os alunos estivessem em outro país.
- Como pretendo passar alguns semestres fora, essas aulas são boas para praticar a fluência e também para aprender termos bem específicos, que dificilmente veríamos em um curso de inglês - diz Gabriel de Mello Sporleder, 18 anos, que primeiro se inscreveu na aula em português, mas mudou de ideia ao saber da alternativa.
Há profissões em que a língua materna sequer é opção. No primeiro semestre da aula de voo simulado (totalmente em inglês), os estudantes de Ciências Aeronáuticas da PUCRS deparam com equipamentos semelhantes aos utilizados nos voos internacionais. E é como se eles estivessem em um avião para o Exterior que o professor passa as instruções. Português, só em emergências.
- Cancela! - ordenou o professor Elones Fernando Ribeiro, em um momento de tensão durante a aula de Fraseologia Aeronáutica.
Ele logo tenta se corrigir:
- Cancellation!
Na simulação, Ribeiro era o controlador de tráfego aéreo, responsável por autorizar manobras e repassar instruções aos aspirantes a piloto. Com exceção do deslize, a comunicação com o professor é toda em inglês - indo ao encontro das exigências do mercado e também convergindo com a crescente internacionalização dos cursos. Mesmo quem não pretende cruzar o céu como profissão sabe que esse conhecimento é desejável para viajar - e estudar - além do país natal.
Mudança mira na internacionalização
A oferta de disciplinas em inglês na graduação, iniciada em algumas das principais universidades brasileiras no ano passado, é motivada pelo desejo das instituições de se internacionalizar.
- Temos uma política de Ensino Superior muito centrada só no nosso país, e iniciativas como essa são elementos importantes para entrarmos de vez no cenário mundial - defende Sérgio Franco, membro do Conselho Nacional de Educação e professor de Educação na UFRGS.
Por enquanto, esse processo depende de iniciativas isoladas das instituições. O Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Educação não impõem regras para exigir aulas em outros idiomas, atrair professores estrangeiros ou receber e enviar alunos de e para fora do Brasil - ainda que haja recomendações nesse sentido.
Mesmo assim, alguns especialistas entendem que a chamada internacionalização é uma tendência irreversível em um cenário no qual o inglês se consolida cada vez mais como língua do conhecimento e em que há uma crescente mobilidade dos estudantes.
- A falta de enfoque internacional é um problema que até agora tem retido o progresso das universidades brasileiras - observa Phil Baty, editor do ranking de melhores universidades do mundo na Times Higher Education.
Há uma série de dificuldades envolvidas no processo, como a necessidade de professores capacitados e dispostos a ministrar as aulas e de alunos motivados a aprender em idioma estrangeiro. Ainda que instituições de Ensino Superior ofereçam cursos para quem deseja aprimorar outra língua, há pouca preparação acadêmica para essas aulas: cabe ao aluno saber o idioma de antemão.
Outro obstáculo é a necessidade de vencer a natural relutância em oferecer cursos em outra língua no país. Essa resistência dificulta a vinda de estudantes estrangeiros para instituições brasileiras e restringe a possibilidade de trazer pesquisadores renomados.
Atrair cientistas estrangeiros significa, segundo os defensores da ideia, diversificar e qualificar a pesquisa do país, enquanto receber alunos de fora incentiva a diversidade. Mesmo com todas os obstáculos, aposta-se que cada vez mais as aulas de inglês vão se incorporar à rotina nacional.
Ganhos e perdas
Oferecer aulas em inglês apresenta vantagens, mas também levanta questionamentos
A favor
Domínio do idioma - Os estudantes praticam um outro idioma e, no estudo de disciplinas específicas, têm contato com um vocabulário que não conheceriam em um curso convencional de inglês
Inserção global - As universidades locais teriam mais facilidade para firmar parcerias internacionais e para atrair estudantes e professores de fora. O Brasil se aproximaria de um cenário acadêmico cada vez mais global, em que o inglês é língua franca, facilitando a difusão do conhecimento produzido aqui
Troca de experiências - A possibilidade de vinda de estudantes estrangeiros às universidades locais permitiria contato com outras culturas e troca de experiências
Contra
Dificuldade nas aulas - Só uma minoria dos brasileiros sabe inglês. Enfrentar aulas complexas em um idioma que não se domina poderia dificultar o aprendizado
Risco de exclusão - Em geral, os que chegam à universidade com bons conhecimentos de inglês vêm de famílias favorecidas, que podem pagar cursos de línguas e enviar o filho para um Ensino Médio no Exterior. Cursos em inglês poderiam alijar estudantes mais pobres
Enfraquecimento da língua - O português é uma das línguas mais faladas, mas é pouco estudado e conhecido fora dos países que o utilizam. Reduzir seu peso no meio acadêmico poderia torná-lo menos relevante e desestimular seu estudo por estrangeiros
*Colaboraram Camila Nunes e Jéssica Weber