Existe uma expressão repetida com certa frequência na rodas sociais gaúchas, sejam recepções, casamentos ou qualquer outra ocasião que exija apuro nos trajes femininos. Ao ver uma amiga elegante, bem vestida e confiante na própria aparência, a interlocutora comenta algo do tipo: Nossa, que vestido lindo!. Ao que a elogiada imediatamente responde: Ah, Rui é Rui, né.
O nome que basta-se esconde um leque de significados. Os principais: a garantia de um traje bem cortado, de acabamento perfeito, com caimento adequado e, principalmente, de bom gosto e cheio de elegância. Não precisa de muita explicação. Para ser belo, basta ser Rui.
Hoje, aos 84 anos (que completou neste sábado, 23), ele ainda é ele. E engana-se quem julga que o costureiro vive de nome. Nada. De sua cabeça repleta de cabelos branquinhos milimetricamente aparados ainda saem criações para noivas, debutantes e tantas outras mulheres que querem, como ele mesmo gosta de dizer, sentir-se rainhas.
Difícil haver em Porto Alegre alguém verdadeiramente interessado em moda que desconheça a trajetória de seu maior estilista. Nascido em Novo Hamburgo em 1929, Rui nem sempre foi Rui. Batizado Flávio Henneman Spohr e destinado a ser padre ou militar pela parteira que o trouxe ao mundo, mudou de nome para assinar suas primeiras criações. Filho de uma tradicional família de origem germânica, decidiu muito cedo que a moda era o seu mundo. Durante um estágio forçado na fábrica de calçados do pai, percebeu que não poderia dedicar-se a qualquer atividade que envolvesse processos repetitivos, sem criatividade, sem arte. Nos momentos vagos na fábrica, desenhou seus primeiros vestidos. Nunca teve dúvida de que nascera para ser Rui.
Fotos: Diego Vara
Aos 22 anos decidiu que, para fazer moda, precisava estudar em Paris. Foi o primeiro brasileiro a se profissionalizar em moda na França. A família, em princípio, protestou. Mas logo viu que o guri não se daria por vencido e resolveu apoiar a aventura no Exterior. Na Cidade Luz o rapazote virou um homem da moda. Viveu as maravilhas de estar no maior pólo cultural do mundo naqueles tempos, viu gente como Yves Saint Laurent e Karl Lagerfeld darem os primeiros passos, aprendeu a beber vinho tinto e champanhe, tornou-se fluente em francês, conheceu boa parte da Europa e trabalhou com Jean Barthé, o maior chapeleiro da França. E, claro, também sofreu. Saudades da família, agruras de um estrangeiro sem o apoio de seu país para concluir os estudos, fome durante uma longa greve dos correios que o impediu de receber o dinheiro enviado pela família para o seu sustento. Ao final do curso na Chambre Syndicale de la Cuture Parisienne, decidiu voltar para casa.
Porto Alegre era o destino com o qual Rui, que a essas alturas já era Rui, sempre havia sonhado. Rio de Janeiro ou São Paulo, centros em que a moda já era uma indústria mais desenvolvida, não atraíam o jovem costureiro.
- Lá eu não seria ninguém. Não havia alta-costura e chapelaria no Rio Grande do Sul. Era a minha oportunidade - comenta.
Na chegada, alugou um apartamento de solteiro no Centro para ser o ateliê. Demorou mais um tempo, no entanto, para que Rui se tornasse o Rui, aquele que simplesmente é. Recém formado em Paris, chegou a Porto Alegre para ser chapeleiro.
- Marcava quase todas as clientes para a mesma hora. Fazia fila no ateliê, elas se encontravam e conversavam, pensavam que eu estava fazendo sucesso. Assim comecei, de fato, a fazer sucesso.
Nesse período bateu-lhe à porta a segunda grande decisão de sua vida - a primeira, segundo ele, havia sido Paris. Estava fora quando uma moça loira, de olhos claros e um vestido rodado sentou-se no sofá, à sua espera. Ele precisava de uma secretária para receber as clientes, marcar horários e cuidar da burocracia do ateliê. Ela aceitou então trocar seu esforço pela experiência de aprender a fazer chapéus. Casaram-se no começo do terceiro ano de trabalho.
- Não teria feito nada disso sem a Dóris. Não seria ninguém sem ela - derrete-se.
Amiga de décadas do casal, a jornalista Celia Ribeiro comenta a parceria afinada entre Rui e Dóris.
- A empresa é resultado da comunhão entre os dois. Dóris nunca competiu na criação e deu condições para que ele pudesse desenvolver suas maravilhas. É um sucesso compartilhado - destaca.
Dessa comunhão nasceram uma filha e histórias capazes de preencher uma conversa animada por dias, sem interrupção. Como não havia desfiles de moda em Porto Alegre, também não havia modelos. Com a intenção de desfilar suas criações, Rui recrutava moças da sociedade. Uma das mais queridas foi Lucia Curia, descoberta em um bonde por Dóris e que chegou a trabalhar na Maison Chanel, em Paris. Durante uma das viagens do casal pela Europa, foram visitar a pupila na loja. Depois de lhes apresentar as novidades, Lucia os convidou para o desfile de apresentação da nova coleção, que ocorreria em duas semanas. Convite aceito, partiram para a Alemanha, para visitar parentes. A estada em terras germânicas estava mais do que agradável, o que acabou retendo o casal. Na volta a Paris, já passado o tal desfile, fizeram uma nova visita a Lucia, para se desculpar pela ausência. Depois de protestar, ela mostrou o mapa com os assentos reservados a M. e Mme. Spohr, sentados entre Marlene Dietrich e Truman Capote.
- É, essa nós perdemos, né Dóris. Poderia ter praticado o meu alemão com ela.
- Como íamos saber...
Logo o ateliê do Centro ficou pequeno para o talento de Rui, que, com a queda nas encomendas de chapéus, finalmente entregou-se às costuras. Tem sido no antigo casarão da Rua Miguel Tostes que mulheres de todas as idades e com todos os propósitos entregam seus sonhos e expectativas nas mãos do homem capaz de forjá-los. Foi em uma das salas repletas de espelhos que a pequena figura de Elis Regina sentou-se no chão, abraçando os joelhos, e explicou como queria o vestido de seu primeiro casamento. Conversaram por horas. Ele ouvia a Pimentinha, que gesticulava e expunha seus desejos. Enquanto ela falava, ele desenhou. E ela decidiu que seria bem daquele jeito o seu vestido. Na mesma sala, algumas semanas depois, ele atendeu Elis ao telefone, que com voz triste desfez o trato sobre o vestido. Algum tempo depois ele viu as fotos do casamento, com a noiva vestida pelo estilista das celebridades da época, Dener Abreu.
- Ela queria usar o meu vestido, mas a pressão era grande. Ela não poderia casar vestida por um estilista de Porto Alegre.
Rui atualmente, aos 84 anos, reproduziu imagem de 1975
No ateliê que guarda tantas memórias também repousa um acervo gigantesco. A grande vedete dos guardados de Rui Spohr são as roupas que ele mantém intactas em seus cabides, identificadas pelo ano em que foram feitas e por quem as usou. Primeiras damas, misses, cantoras e mais uma infinidade de personalidades brasileiras estão representadas ali, pelos seus figurinos. Também há formas de chapéus, máquinas de costura, moldes, tesouras, tecidos e muitas, muitas revistas de moda. Há fascículos de moda franceses que datam de 1890. A coleção da Vogue França começa na década de 1960 e vem até hoje. Sem uma falha sequer. O destino de tudo isso preocupa Rui. Gostaria de doar para alguma entidade reconhecidamente responsável e interessada no estudo da moda. Dóris trabalha, há alguns anos, na catalogação de todo o material. Pensa na possibilidade de abrir uma fundação com o nome de Rui, para preservar o acervo e estimular a formação de novos estilistas. Só ideias, por enquanto.
A maturidade chegou para o costureiro como um limitador. Sente a mente jovem, ativa, cheia de ideias. Mas também sente o corpo menos disposto. Não se queixa. Diz-se feliz por rever sua trajetória e encontrar a vida que teve. E não se entrega. Continua, como foi na juventude, um bom dorminhoco, que precisa de nove ou dez horas de sono por noite, e um apaixonado por champanhe - e pelo espumante brasileiro, seu equivalente. E continua fazendo o que mais gosta, que é desenhar, criar, fazer arte enquanto faz moda. Enfim, continua praticando sua maior qualidade, que é simplesmente ser Rui. Durante duas ensolaradas tardes, o estilista recebeu a reportagem de Donna em seu ateliê, para conceder a entrevista cujos trechos principais você lê abaixo:
Rui é Rui
Conheça a trajetória de Rui Spohr, mais emblemático estilista do Sul
Em entrevista à Donna ZH, ele revisita acervo de 60 anos de carreira
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