Não saberia especificar quantos, mas muitos motoristas têm uma birra com ciclistas. Dizem que são muito abusados. Que pedem para ser atropelados. Que as ciclovias estão sempre vazias e tiram espaço dos carros. Que não sei mais o quê. Como ciclista ocasional, não entendo muito bem o motivo dessa birra. Mas tenho um palpite.
Os motoristas a que me refiro - que não são todos os motoristas - provavelmente sabem, mas não gostam de admitir, que uma cidade precisa de mais ciclistas e menos motoristas. Importantes localidades da Europa, nas quais nos espelhamos sob alguns aspectos, privilegiam bicicletas. Que brasileiro não curtiria uma bela pedalada em Amsterdã?
Daí que, na cabeça dos tais motoristas birrentos, os ciclistas representam um desafio, digamos, ético. Porque são sustentáveis, fazem exercício, desafogam o trânsito e - melhor para eles - economizam gasolina, seguro e manutenção do carro. Não estou advogando necesariamente largar o carro de mão. Carro é bom, às vezes. Mas esquecemos ou não queremos lembrar que a bicicleta é uma boa alternativa.
No estacionamento do prédio em que moro, há duas bicicletas estacionadas em meio aos carros: a minha e uma outra, pequena e rosa, da filha dos vizinhos. Há um vácuo no nosso crescimento. Pedalamos quando crianças e depois deixamos de lado, como se fosse algo do passado. Achamos que gente grande tem que andar apenas de carro.
Poderia passar a noite citando outras categorias que provocam desafios éticos ao pensamento majoritário. Os vegetarianos, por exemplo. A presença deles incomoda muitos carnívoros porque lembram - mesmo sem falar nada - os maus tratos que a produção industrial de carne provoca na vida animal. É uma realidade que sobrevive da negação das pessoas. Há algumas possibilidades para enfrentá-la: deixar de comer carne, selecionar cuidadosamente a origem do produto consumido, etc. Mas a maioria prefere simplesmente não fazer nada. Daí que os vegetarianos pareçam, aos olhos de muitos, figuras incômodas. Eles os remetem à própria inércia.
Último exemplo, para não nos estendermos muito: a comunidade LGBT. Uma parte barulhenta da população, dos líderes religiosos e do Congresso Nacional têm a mesma opinião: a comunidade LGBT quer ter mais direitos que os heterossexuais. Cá entre nós, sabemos que não é verdade: eles querem apenas ter os mesmos direitos - casar, adotar filhos, doar sangue e por aí vai. Aos olhos dos intolerantes, a comunidade LGBT representa o seguinte problema: os "homens de bem", que se dizem guardiões da tradição e da família, não querem o bem de toda a sociedade, mas de parte dela - a parte à qual pertencem. De resto, qualquer leitor de filosofia grega sabe o quão tradicional é a homossexualidade.
A questão, portanto, é deixar de enxergar nos outros as nossas limitações e enfrentar os próprios demônios. Às vezes, o problema somos nós.
*O colunista Tulio Milman está em férias.