Poucas coisas são mais perigosas em um país do que perder a confiança no sistema de Justiça. Mas como esperar que o cidadão comum acredite na Justiça do seu país quando lê uma notícia como a publicada pelo repórter Matheus Schuch, nesta segunda-feira (25), com o título "CNJ vai avaliar conduta de juiz da boate Kiss"? Como esperar que confiem na Justiça pais, mães, filhos, amigos, médicos, socorristas e todos os que de alguma forma foram coadjuvantes da maior tragédia da história do Rio Grande do Sul, quando corremos o risco de ver condenado o juiz que conduziu o júri anulado por seus pares, enquanto os que contribuíram direta ou indiretamente para o sinistro, por ação ou omissão, seguem impunes?
O juiz foi atacado por um dos advogados de defesa porque tratou os jurados com humanidade naquele júri longo, cansativo, capaz de abalar emocionalmente até pessoas conhecidas pela frieza. Orlando Faccini Neto, o magistrado, pode ter errado em alguma filigrana, mas qualquer insinuação de que o tenha feito por má-fé é de uma crueldade que beira a desonestidade intelectual. Ou seria o contrário? Tecnicamente, o que o CNJ vai julgar nesta terça-feira é um pedido de providências do advogado Jader Marques, reclamando que Orlando Faccini Neto teria desrespeitado a resolução número 135/2011 do CNJ ao divulgar manifestações sobre a anulação do julgamento. E por ter chamado a ele, Jader, de "perdigueiro de nulidades".
Quem acompanhou o julgamento deve estar se perguntando com que ânimo o juiz levantará da cama todos os dias para exercer seu ofício, ainda que em outra área. Talvez o Dr. Orlando ainda seja um sonhador, que acredita possível fazer Justiça de outra forma, atuando na Vara que trata do crime organizado. Não se sabe por que o juiz recolheu-se ao silêncio, sabedor de que qualquer palavra dita no calor da emoção poderá ser usada contra ele.
A tragédia da boate Kiss é um desses casos em que tudo parece fora de ordem. De volta ao começo, todos os erros que podiam ter sido cometidos em um empreendimento dessa natureza o foram. Um velho depósito de bebidas adaptado para virar casa noturna abriu as portas e tornou-se ponto de encontro dos jovens de Santa Maria.
Sem isolamento acústico adequado, o barulho incomodava a vizinhança, que pedia socorro à Brigada Militar, ao Ministério Público. E então chegou o dia em que, para não ferir os ouvidos dos moradores do entorno, os proprietários revestiram o interior da boate com uma espuma assassina, mas isso só se saberia naquela noite de janeiro. O baile precisava continuar. Com superlotação, com um brete que transformava a casa numa arapuca, com extintores vencidos, sem saídas de emergência.
No empurra-empurra das culpas, a irresponsabilidade foi passando de mão em mão e só quatro civis e quatro bombeiros militares viraram réus. Os bombeiros foram condenados, mas nem começaram a cumprir pena. Os quatro civis foram condenados no júri anulado. No meio do caminho, pais que clamavam por Justiça e apontavam outros eventuais culpados foram processados. Não faltou nem quem perguntasse por que não impediram seus filhos, mesmo maiores de idade, de sair naquela noite para se divertir na boate que todos imaginavam segura.
Os competentes advogados dos réus conseguiram a anulação do primeiro júri e talvez venham conseguir do próximo, do próximo e do próximo se seus clientes forem condenados. Porque o Direito não é uma ciência exata. É fácil condenar o responsável pela morte de uma pessoa ou de um animal silvestre. De 242 é mais complicado, porque a fumaça ofusca a visão, o tempo dilui as culpas e voltam as perguntas andando em círculos. Por que só quatro condenados? Por que tão poucos denunciados? Por que isso? Por que aquilo? Por quê? Por quê?