No início, eu imaginava o isolamento como um filme em que a passagem do tempo é marcada por uma sucessão de cenas de alvorecer e de ocaso. Cem dias depois de ter saído da redação para quarentena, a sensação é de que a passagem do tempo já não será contada em dias ou semana, mas com a virada das folhas do calendário japonês, que tem uma ikebana para cada mês do ano. Ou pelas estações, porque já parece impossível que a vida retome seu eixo antes da primavera.
Sou do primeiro grupo, o de 17 de março. Na véspera, tinha morrido o primeiro brasileiro pelo coronavírus. Na semana anterior, a Organização Mundial da Saúde elevou o status da covid-19 para pandemia e alertou o mundo para o alto poder de contaminação do coronavírus.
Saímos sem saber quando voltaríamos. Até então se falava em quarentena de 14 dias, mas a experiência de Wuhan, isolada do mundo por terra, água e ar havia quase dois meses, me fazia especular sobre um período mais longo de trabalho remoto. Jamais podia imaginar que passaria o outono inteiro vendo o tempo escoar pela janela e que entraria no interno sem perspectiva de retorno ao que seria uma “vida normal.
A minutos do isolamento completar cem dias, aqui estou nesta noite de fim de junho em que lá fora faz 9ºC tentando retomar o diário que comecei em 16 de março e interrompi no 53º dia, 8 de maio, cansada de resumir a tragédia diária e convencida de que a rotina da tripla jornada não merecia registro. Naquele dia o Brasil tinha 145.328 casos confirmados de covid-19. Escrevi: “Números de pesadelo: 751 mortos em 24 horas e 9.897 em menos de dois meses”.
De lá para cá, o pesadelo se aprofundou. Há mais de um mês, a média diária de óbitos passa de mil (a contagem cai nos fins de semana, para recrudescer a partir de terça-feira). Já são 55.961 e não chegamos ao pico, ponto a partir do qual estaremos no platô para só então começar a descida. O Rio Grande do Sul soma 540 mortos, mas entrou em estado de alerta com o aumento do número de casos e o crescimento acelerado da demanda por leitos de UTI. Sob bandeira vermelha, voltamos à situação do final de março, com quase tudo fechado na Região Metropolitana.
Tenho a sensação de que envelheci mais nestes cem dias do que nos últimos cinco anos. A preocupação enbranquece os cabelos, acentua as rugas, tira o brilho do olhar. Com a economia em ruínas, aumenta o desemprego, a pobreza, a fome. Tenho convicção de que estaríamos em situação bem pior se não fossem as medidas para conter o avanço do vírus. Quem haveria de querer consumir, se divertir, viajar, com uma espada sobre a cabeça?
Nestes cem dias tive de reorganizar a rotina para acomodar as tarefas domésticas numa agenda em que não cabia mais nada. Só vi dois filmes, li apenas três livros, não assisti a nenhuma temporada inteira de série. O tempo se esvai como num sopro e já é sexta-feira outra vez.
Na próxima semana entrarei em férias, porque assim manda a lei. Não fosse a pandemia, estaria vivendo a euforia que precede as viagens, pesquisando a meteorologia, arrumando mala, planejando roteiros. Agora, talvez não possa nem mesmo visitar minha mãe, a quem não vejo desde fevereiro. Chance zero de uns dias na serra, um fim se semana no Rio ou de uma esticada até o Uruguai, porque todas as fonteiras estão fechadas.
Prisioneira de um vírus, resta-me viajar pelas páginas dos livros ou pelos cenários de filmes, enquanto sonho com o dia em que esse pesadelo vai acabar.