Antropólogo colombiano da Universidade de Antióquia, em Medellín (Colômbia), Santiago Uribe se mudará para o Estado a partir de 1º de julho para coordenar o grupo de trabalho internacional da iniciativa "Porto Alegre Resiliente".
Lançado pela Aliança para Inovação, que reúne UFRGS, PUCRS e Unisinos e faz a gestão do Pacto Alegre, o projeto terá como objetivo consolidar uma cultura de resiliência entre os gaúchos diante da crise provocada pela tragédia da chuva.
Uribe coordenou o Cidades Resilientes, iniciativa que tirou Medellín do mapa das cidades mais violentas do mundo. Por vídeo, o pesquisador, que já esteve várias vezes na Capital, conversou com a coluna sobre os desafios diante da crise no Estado.
Medellín era uma das cidades mais perigosas da América Latina devido ao narcotráfico. Conseguiu reduzir a criminalidade em um país que viveu também uma guerra civil. Que lições de reconstrução podem ser aplicadas ao Rio Grande do Sul?
A aprendizagem é o mais importante que Medellín pode transferir para Porto Alegre. Todo início do movimento de transformar a realidade surgiu de uma mobilização cidadã. As capacidades mais importantes que Medellín desenvolveu foram de organizar a cidadania por meio de criar organizações sociais, ONGs, grupos de voluntários para criar lideranças comunitárias que souberam administrar processos que, anos depois, inspiraram políticas públicas que a cidade tem hoje.
O que o senhor destaca?
O trabalho mais forte foi o de criar diálogo social para planejar a cidade para o futuro. Havia uma intenção muito clara de fortalecer os líderes comunitários, a cultura cidadã, dos que queriam e querem transformar a cidade a partir de uma visão coletiva. Isso foi muito importante. Jovens se envolveram, disseram: "Não queremos mais ser partícipes da guerra, queremos criar organizações comunitárias, levar o desenvolvimento social a nossos bairros". Eles se juntaram em organizações. Delas, saíram prefeitos, mulheres líderes e um monte de organizações que começaram a criar capacidades locais. Uma coisa que Porto Alegre tem é muitas pessoas querendo trabalhar juntas. Isso requer algumas capacidades de organização e de liderança que às vezes se perdem porque não são construídas entre todas uma visão coletiva de cidade: "Qual é, entre todas as visões, a que Porto Alegre quer transformar? Creio que isso poderia ajudar.
Observa-se, nessa tragédia, as pessoas querendo ajudar, porém, muitas vezes, falta coordenação entre poder público e privado. Não seria necessária uma coordenação de esforços?
Do ponto de vista da segurança, vocês precisam desenhar duas coisas: um centro integrado de inteligência e dados. E que esse não seja um assunto apenas para a segurança, mas pensado para fazer todo o planejamento estratégico da cidade. Não um centro integrado para responder a desastres, mas para o planejamento estratégico, que gere informação, dados para políticas públicas, que possa gerar resposta e que integre as diferentes secretarias da cidade em uma política pública de segurança. Mas, quando falo de segurança, não é em termos de violência, mas de proteção. Quando estava sediando os Jogos Olímpicos ou o Mundial, o Rio construiu um dos centros de comando mais inovadores do mundo. Fui visitá-lo, mas entendiam o centro de comando como um lugar para dar resposta aos eventos, não para planejamento estratégico da cidade. Em Medellín, esse centro coordena todo o planejamento estratégico da cidade, ali são gerados todos os dados para que se possa desenhar as políticas públicas. Medellín tem um censo que avalia a qualidade de vida, a cada dois anos, a partir de 153 indicadores. Todos esses dados entram nesse centro de comando para que inspirem planejamento. Há também um censo de cultura cidadã que faz uma pesquisa, também a cada dois anos, a partir de mais de 60 indicadores. Não é um centro de resposta, mas de planejamento estratégico.
Como integrar as ações de diferentes secretarias de governo?
Quando olhamos Porto Alegre em especial, a pergunta é por onde começar? Tenho uma apresentação que diz: "Comece pelo final". Comecem por criar uma visão da cidade que, juntos, querem construir e trabalhar. Sim, essa é uma oportunidade. Hoje há uma oportunidade maravilhosa. Dedicar-se a trabalhar no dia a dia para resolver que o Quarto Distrito funcione, que a Churrascaria Komka abra, que o Mercado Público seja limpo e reabra. Caso contrário, irão perder a oportunidade que trazem as crises, que já lhes fez colocar um freio, uma parada no caminho. Devem dizer: "Bem, isso já nos impactou. Temos de pensar em uma cidade nova."
Mas é difícil pensar em oportunidades neste momento uma vez que muitas pessoas não tem água, não tem casas.
É muito difícil. Mas é preciso criar uma metodologia para isso. Acredito que poderíamos criar dispositivos nos bairros para começarem a conversar sobre o futuro da cidade. Porque, se passa um ou dos meses e não se começa esse diálogo, perde-se essa oportunidade. Os meios de comunicação são importantíssimos em promover isso. Sem dúvidas, Porto Alegre viverá uma transformação de futuro muito completa.
A politização pode atrapalhar?
Porto Alegre vai precisar de toda energia e recursos com foco no mesmo objetivo.
Que chamem os políticos para que entendam que a única maneira de sair de uma crise como essa é deixar a polarização de lado e unir-se. Porto Alegre vai precisar de toda energia e recursos com foco no mesmo objetivo. Inclusive essa crise pode resolver esse assunto, de encontrar uma unidade comum nas diferenças políticas. Nós encontramos quando combatemos Pablo Escobar. Inclusive tivemos de aceitar que os conservadores, os liberais, os de esquerda, os de direita, se não trabalhassem juntos, esse homem iria tomar o controle da cidade por meio da violência. É importante seja mobilizada uma união política. Mas se ninguém propõe... Os líderes políticos, não importa o partido, têm de se juntar para criar também uma nova política para resolver a crise. Caso contrário, também irão perder essa oportunidade.
Como lidar com a criminalidade em um momento como esse, em que há saques, por exemplo?
Esse é um tema muito complexo nesses cenários. Os criminosos são os primeiros a se aproveitar das oportunidades e muito rapidamente identificam os vazios e atuam. É necessário apelar à humanidade, a que os grupos de cidadãos se organizem para enfrentar esses movimentos. A única coisa que eu recomendaria é não utilizar o discurso de guerra: transformar o cenário de crise em um cenário de guerra, que vi que muitos fizeram na comunicação. O "cenário de guerra" gera uma cultura de violência muito difícil de ser desinstalada, depois que a crise passa. Quando se instala um discurso de guerra, desinstalar essa linguagem custa muito caro. Então, é necessário criar boas estratégias de comunicação.
É uma tragédia, mas não é uma guerra.
Não estamos falando de guerra. Estamos falando de ambiente. Alguém em um grupo do qual participo, de Rotterdam, Holanda, disse algo que me pareceu incrível: "Parem de usar a tecnologia". A pior coisa que podemos fazer é usar essa tecnologia de guerra. Porque, se fosse uma guerra, teríamos de ter um inimigo. E nesse caso, o inimigo seria a natureza. A chuva, a natureza, não são inimigos. Então, não se pode chamar de guerra. Depois que se converte nessa cultura, não se pode mudar. Estamos trabalhando em um projeto de resiliência, de restabelecimento. As pessoas não podem ter esse cenário, essa ideia de destruição para sempre. Há um estado de exceção? Não. O estado atual aqui é diferente. Temos os poderes criticados. Acredito que o maior desafio é que estamos sem governança. O poder não está preparado. Não há governança, não se articulam em nível estadual, municipal. E, com essa confusão política de colocar o candidato a governador a liderar o negócio (Paulo Pimenta, nomeado ministro extraordinário para a reconstrução), complica ainda mais. É uma situação política indissociável. Mas acredito que a sociedade civil está mais atuante que o próprio governo.