Em que outra região do mundo um governante perde uma perna na guerra e realiza um funeral com honras de Estado para sepultar, ele próprio, essa parte do corpo? Onde mais um presidente dedica vários minutos em rede nacional de TV para exaltar as supostas qualidades afrodisíacas da carne de porco? Ou onde um chefe de Estado foge do país e envia a renúncia por fax? Há bizarrices que parecem só ocorrer na América Latina.
Diversos livros de história já foram escritos sobre essa região que deu ao mundo caudilhos, ditadores, Messi, o primeiro papa do sul do mundo, entre tantos outros personagens, mas nenhum com o tom irônico, a pena perspicaz, o bom humor, o rigor jornalístico e a inteligência enciclopédica de Ariel Palácios.
O correspondente da GloboNews e apresentador da CBN, paranaense de Londrina radicado em Buenos Aires, supre essa lacuna com a obra "América Latina lado B", que chega às livrarias pela Globo Livros.
Com prefácio de Guga Chacra e posfácio de Nilson Klava, é uma obra imperdível. Há Crises sociais, violência, golpes militares e corrupção. Alberto Fujimori, Alfredo Stroessner, Carlos Menem, Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Javier Milei... estão todos lá nas 446 páginas saborosas de serem lidas.
Alguns desses causos de um dos maiores conhecedores da América Latina Ariel contou à coluna. O resto só no livro. A seguir os principais trechos.
Você escolheu a ilustração de um militar para a capa do livro. Entre tantas semelhanças, ditadores e ditaduras também nos "hermanam"?
Muito. A América Latina é diversa. Culturalmente, socialmente até linguisticamente. O espanhol do México é muito diferente do espanhol da Argentina e, economicamente, as sociedades são tremendamente diversas. Mas acho que um dos pontos em comum que assolam toda a região, desde as independências até os tempos atuais, são as bizarrices. Há países que têm overdose de bizarrices, como Nicarágua, Venezuela ou a própria Argentina ou a Bolívia. Isso independentemente do presidente, do tom ideológico do presidente, ditador ou monarca de plantão, porque a região também teve algumas poucas e bizarras monarquias. Uma das coisas que "hermana" os países da região é justamente o fato de terem padecido e continuar padecendo com líderes com grande concentração de poder, civis ou militares ou civis respaldado por militares, ou a de uma esquerda bastante peculiar.
Populistas?
O líder populista não é exclusividade latino-americana, não foi inventada aqui evidentemente. Populismo é quando um líder recorre ao apelo emocional para movimentar as massas, seja Donald Trump, Vladimir Putin, Daniel Ortega, na Nicarágua, exemplos dos mais variados. Geralmente, na América Latina, esses líderes levam seus países a crises econômicas graves ou catastróficas.
O caudilhismo parece algo muito característico da América Latina.
Exatamente. O caudilho é a figura sine qua non desde as independências. É o líder que popular chega o poder e, ao ter tanta concentração de poder, pelo dinheiro, pela força e aí "pira na batatinha"', como diziam nos anos 80: ele começa a governar de uma forma maluca, cometendo atos que temos visto nesses dois séculos de história latino-americana, como um ditador que tem um filho que é fascinado por carrinhos militares, por aviões e por helicópteros e manda a aeronáutica enviar um helicóptero para seu filho brincar com os amiguinhos, coisa que aconteceu no Peru com Alberto Fujimori. Ou um líder que tem tanto poder, como Nicolás Maduro na Venezuela, que levanta dúvidas se está se fazendo de mentalmente perturbado ou se está, realmente, mentalmente perturbado, quando faz declarações dizendo: "Estive conversando com o Hugo Chávez, falecido naquela época já, por intermédio de um passarinho". E também há o líder que, em uma exposição agropecuária, "conversou" com um grupo de vacas pedindo os votos. Você tem gastos de presidentes construindo pistas de pouso porque o vilarejo preferido dele fica nos cafundós, como o caso de Carlos Menem. Pais ditadores já são cruéis, mas filhos que viram ditadores podem ser muito pior, como o caso de Baby Doc, filho de Papa Doc, família que governou o Haiti durante décadas. Baby Doc tinha uma Ferrari, mas as ruas de Porto Príncipe nos anos 70 eram de terra, então não dava para dirigir esse carro. O que ele fazia: fechava o aeroporto, porque ali tinha a pista asfaltada para os aviões, então ele ficava correndo na Ferrari, indo e voltando. Enquanto isso, os voos tinham de ser direcionados para Santo Domingo, na vizinha República Dominicana. O livro é uma antologia de bizarrices.
Seria impossível fazer um livro "sério" sobre a América Latina sem contar essas histórias esdrúxulas, não é mesmo?
É uma tragicomédia. Como o caso da ditadura argentina, onde mantam milhares de pessoas e um dos famosos torturadores pede, à noite reza, e pede a Jesus que o ilumine para que saiba quem deve eliminar no dia seguinte.
Fechamos com a esperança na dedicatória a uma série de crianças, desejando que elas não tenham de viver com líderes bizarros no futuro.
Por que o Brasil sempre olhou mais para a Europa e os EUA e parece estar de costas para a América Latina?
A coisa mudou desde os anos 1990. O Brasil cada vez mais olha a América Latina. Hoje em dia, por exemplo, eu entro todos os dias na GloboNews falando sobre a América Latina. Décadas atrás, os jornais brasileiros só davam alguma notícia da América Latina quando havia um golpe de Estado, um terremoto. A maior parte dos meios de comunicação brasileiros, nos anos 50 e 60, não tinha correspondentes na região. Hoje em dia tem. Há uma grande diferença em relação a países como Estados Unidos ou de blocos como União Europeia pelo peso que essas economias têm. Mas há um conhecimento cada vez maior no Brasil sobre o resto da América Latina, porque, no fim das contas, também somos parte dela.
A que se deve essa conexão maior entre os países que falam espanhol? Apenas o idioma?
Deve-se há vários fatores. Por exemplo, quando a gente olha geograficamente Argentina e Uruguai, as duas capitais, Montevidéu e Buenos Aires, estão separadas apenas pelo Rio da Prata. Pessoas de Lima ou de Assunção, durante o século 20, vinham direto fazer faculdade em Buenos Aires. Há um vínculo muito forte entre Mendonza, uma das principais cidades argentinas, e Santiago do Chile. Há uma conexão intensa entre o Peru e a Bolívia, entre a Colômbia e Venezuela, entre a o Equador e a Colômbia e vice-versa. Há uma integração desses países, até porque foram colônias da Espanha e durante muito tempo estiveram administrados pelo país europeu. Então, há um passado, um currículo em comum e geograficamente as cidades estão próximas. O Brasil durante muito tempo esteve geograficamente longe do resto da região. Tinha fronteira? Sim, mas nelas não estavam grandes cidades, exceto por exemplo no caso do Rio Grande do Sul, encostado nos principais centros. Mas, até meados do século 20, não havia grandes cidades nem do Mato Grosso, nem do Acre, nem do Paraná, na fronteira. A interação com o resto da região era muito pequena até porque o Brasil estava, até a metade do século 20, muito perto do litoral e não avançava para o Oeste.
Por que, no livro, você deixou o Brasil e fora?
Acho que por causa, inclusive, dessas características. Há uma série de características mais fortes entre esses outros países da região e durante muito tempo houve uma interação maior do que com o Brasil. E o Brasil merece um livro separado, especial. Não que o Brasil tenha mais bizarrices do que o resto da região, mas acho que o brasileiro merece um livro específico sobre o país e não apenas uma pequena antologia de bizarrices do resto da região. Por isso, não coloquei o Brasil.
Falando sobre os dias atuais, como está a Argentina de Javier Milei?
Milei tinha duas bandeiras que teve de arriar temporariamente pelo menos: dolarização da economia e eliminação do Banco Central, que ele considera como a origem de todos os males do país. Mas para Milei, o Banco Central é tipo Lord Voldemort, e (ele) se acha o Harry Potter. Mas Milei não tomou apenas um banho de realidade, ele tomou uma hidromassagem de realidade, quando, depois da posse, foi deixando esses assuntos de lado. Até teve de colocar um ministro da Economia, Luis Caputo, que foi um dos homens (fortes) do ex-presidente Maurício Macri, que é contra a dolarização. Milei teve que ir deixando de lado esses assuntos, até porque o próprio FMI não concordava com o fechamento do Banco Central ou com a dolarização da Argentina. Essas bandeiras foram arriadas. O fato é que Milei tem uma microminoria no parlamento em um país onde não existe centrão. O Brasil, durante a maior parte do tempo, foi um país do consenso, seja isso bom ou ruim. Pedro II sempre jogava entre um gabinete liberal ou conservador. A República Velha era a do "café com leite". Na Argentina não, sempre os presidentes tiveram maioria e, quando deixaram de ter, se lascaram. Na Argentina, todo mundo quer se presidente. Não existe aquele pessoal que quer o poder, mas sem a presidência, como centrão no Brasil. Então Milei tem de lidar com isso. Mas é a pessoa preparada para negociar? Não. Esse é o problema dele. Milei é estabanado, emocionalmente muito mutável, briga por qualquer coisa. Muitos fãs dizem "Milei briga muito bem, ele é macho, ele tá certo". Mas com as brigas não conseguiu nada até agora. É um mistério o que vai acontecer com Milei na Argentina. É um total mistério, porque são muitos fatores novos para política Argentina e um presidente que tem um lado esotérico, isso já existiu mas não no grau de Milei, de consultar o cachorro falecido sobre assuntos políticos por telepatia. Isso também é bastante insólito. O fato é que a situação da Argentina é catastrófica. Não é coisa de agora: a inflação é um problema colossal desde os anos 60. Não é uma novidade a decadência Argentina. Fracassaram militares, civis, peronistas e antiperonistas.
Como foi o processo de fazer o livro em meio à correria do trabalho como correspondente?
É um é um projeto antigo, de 10 anos. Quando terminei o primeiro livro "Os argentinos", imediatamente comecei a pensar nesse. Tenho três amigos diferentes. Quando eles tinham alguma reunião com pessoas muito diversas, e sabiam que podia haver algum momento, talvez, de tédio, uma pausa, aquele silêncio, essas coisas, eles me chamavam, porque diziam: "Ariel, conta daquela vez em que o Fujimori chegou rodeado de um grupo de ninjas ou algo parecido ou aquela vez em que o Menem não parava de olhar para o decote da Madonna e ficava suado". Então, eu contava os causos que eu tinha vivenciado ou que eu sabia que haviam ocorrido, porque sempre fui fascinado pela história. Pensei: "Por que não transformar isso em um livro?". As histórias podem servir para, durante um churrasco, alguém contar para os amigos. Agora eu estou pensando: o livro pode ser vendido o livro junto com um kit de facas (Risos), talvez para churrasco. A ideia surgiu dessa forma. Fui fazendo aos poucos, porque o trabalho para cobrir a América Latina é intenso e coincidentemente eu acho que serviu também o fato de que estava no meio do livro quando apareceu a figura de Milei. Isso gerou uma extensão do capítulo da Argentina muito maior do que estava previsto. Fechamos com a esperança na dedicatória a uma série de crianças, desejando que elas não tenham de viver com líderes bizarros no futuro.