No próximo dia 1º de julho, o governo Lula completa seis meses de mandato. A coluna convidou o professor André Luiz Reis da Silva, especializado em política externa e docente do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para analisar as ações do governo no âmbito externo. Leia os principais trechos
Que avaliação o senhor faz dos primeiros seis meses de governo na política externa?
O governo Lula tem colocado sua agenda de política externa, de certa forma, semelhante, em algumas características, ao que foram Lula 1 e 2. Ele tem procurado readequar a política externa brasileira às reais capacidades do país. Nos últimos quatro anos e se poderia dizer até seis anos, o Brasil operou uma diplomacia muito aquém das suas capacidades. Saímos de vários espaços internacionais que ocupávamos. Quase propositadamente o Brasil foi se tornando um pária em vários cenários. Agora, por um lado, a primeira prioridade era retomar a credibilidade do Brasil no cenário internacional. Por outro, retomar a participação nessas várias esferas. Lula tem retomado as capacidades do Brasil a partir das principais diretrizes, como a agenda ambiental, fortalecendo a cooperação com os BRICS, com a América Latina, reforçando nossa participação nos fóruns globais e na cooperação Sul-Sul.
É conhecido o desejo do presidente Lula de se mostrar como um estadista, inclusive com a ambição de mediar a paz na Ucrânia. O Brasil tem cacife pra isso? Não caberia ao Brasil estar mais próximo de uma agenda que incluísse, por exemplo, países sul-americanos, a área ambiental, do que lidar com um tema tão distante quanto a Ucrânia?
Claro que há uma ambição brasileira em participar dos grandes temas internacionais, em projetar o país como articulador de negociações em temas bastante complexos da agenda internacional, o que também nos credenciaria, por exemplo, a atuar como possível membro no Conselho de Segurança da ONU. Também há uma espécie de desejo de não estar indiferente aos grandes temas globais e pensar que tipo de serviço o Brasil poderia oferecer aí. Tem toda a razão a argumentação contrária, dizendo que o Brasil não tem as capacidades militares para impor a paz em um cenário como aquele (da Ucrânia), no qual grandes potências estão em disputa. É um jogo pesado de grandes potências. O Brasil não tem a capacidade militar para impor uma paz ali. Entretanto, já há armas suficientes na região. E, talvez, o que esteja faltando agora é a diplomacia. As posições do governo Lula a respeito do tema da Ucrânia têm causado bastante questionamento, não só no Brasil como internacionalmente. Acho que o governo Lula está procurando encontrar um ponto de equidistância e um momento certo que permita se colocar como mediador das negociações para o encerramento do conflito. Talvez não só o Brasil, mas o Brasil e um conjunto de outros países, principalmente os emergentes: a Índia, a Indonésia, entre outros. Mas em uma situação de acirrada disputa, as movimentações, os canais de diálogo, em especial as palavras do presidente Lula, têm sido criticadas com uma espécie de apoio incondicional à Rússia e gerando essas críticas internas e internacionais. Ao mesmo tempo, o Brasil tem resistido às pressões para aderir aos posicionamentos do Ocidente e da narrativa ocidental que define a Rússia como um dos grandes inimigos coletivos do século 21, que acaba ignorando a responsabilidade da própria Otan no conflito.
Algumas frases de Lula precisam ser melhor trabalhadas pela área de comunicação. Isso é inegável.
Há um problema de comunicação no governo?
Claro que algumas frases de Lula precisam ser melhor trabalhadas pela área de comunicação. Isso é inegável. Há resvalos do ponto de vista de comunicação de governo.
Como atribuir o mesmo peso à Ucrânia e à Rússia no caso da invasão?
Isso porque ele não está colocando a coisa no ponto: a Ucrânia é vítima da Otan e da Rússia. Ele colocaria a coisa em outra perspectiva, se o fizesse assim. Havia um assédio da Otan anterior à Rússia. Em um tema extremamente nevrálgico, que envolve grandes potências e pode envolver, inclusive, um conflito com potencial nuclear, a medição da palavra é muito complexa, e até porque ela implica também como serão dadas as negociações de paz.
Não há sinais de que o governo Lula está mais pró-Rússia?
Eu diria que, dos Brics, por exemplo, o Brasil é o país que mais posições críticas manifestou sobre a Rússia, inclusive nas votações nas Nações Unidas (ONU). A posição do Brasil tem sido a de defender o Direito internacional, criticar a guerra e a invasão, defender a paz e uma solução negociada para o conflito. E aí vem o pulo do gato: se, dos Brics, o Brasil é o país que tem posições mais críticas à Rússia, isso o torna o interlocutor mais ocidental dentro do bloco. A solução do conflito ucraniano certamente vai ter que contar com a aval chinês. O Brasil pode se transformar aquele que conta com a confiança desses países na negociação. É uma boa estratégia. Se tu colocas a coisa nesse ângulo, tu entendes o caminho que o Brasil vem fazendo nos últimos seis meses. Pode não dar certo, mas observa que o Chefe de gabinete de Volodmir Zelensky telefonou para Celso Amorim na semana passada convidando o Brasil para conversar. Então, alguma coisa está funcionando. O Brasil não tem as armas, o Brasil ainda não achou exatamente o ponto de equidistância, o timing correto, mas a forma como vem conduzindo o colocou como elemento de ligação entre os Brics, que inclui Rússia e China, e o Ocidente.
Muito se fala sobre o pragmatismo brasileiro, mas depois de visitar os EUA, Lula foi à China e, no retorno, deu declarações que soaram como anti-americanas. A diplomacia presidencial ajuda ou atrapalha?
Em muitas dessas viagens, eu acho que ele ainda precisa calibrar a comunicação de todos os textos, das declarações conjuntas, quando dá entrevista. Por exemplo, aquela entrevista que foi considerada bastante questionável, quando estava nos Emirados Árabes Unidos, voltando da China, depois de tantas horas de viagem, cansado, dá uma entrevista… Esse tipo de coisa tem que cuidar. É claro que cada presidente, quando vai a um cenário, ele faz ajustes discursivos. Mas tem de cuidar, sim, para não haver um curto-circuito. O caminho que o Lula está fazendo é o seguinte: primeiro junto aos parceiros prioritários do Brasil, Argentina, Estados Unidos, depois vai à China, e faz outras viagens, a Portugal, ao Reino Unido, à Espanha. Mas está muito claro que na questão da transição hegemônica global, nessa acirrada disputa entre China e Estados Unidos, o recado é de que o Brasil não é alinhado a nenhum dos dois. O Brasil tem que ser alinhado ao próprio Brasil, ou seja, identificar com bastante pragmatismo o que interessa na parceria com os dois.
A matriz de inserção internacional que o Lula 3 está aplicando é muito semelhante à de 20 anos atrás. Mas o cenário mudou.
Essa é a sua opinião também?
Acho que a gente não tem de tomar posição por um ou por outro. Temos que tomar uma posição pelo Brasil e lidar, porque os dois países são importantes para nós, comercialmente, economicamente, politicamente e por aí afora.
Essa é uma visão bem diferente da adotada pelo governo Jair Bolsonaro, que manteve um alinhamento automático com o governo Donald Trump.
Exatamente Não serve para um país com o tamanho do Brasil, que não tem como fazer uma política de pegar carona em uma grande potência. O Brasil tem interesses próprios no sistema internacional, contradições, inclusive, em alguns interesses que limitam muito a possibilidade de se ligar a único país. Além disso, pior ainda: a chance de trocar o governo é muito grande. Foi o que aconteceu com o Bolsonaro, que, nos primeiros dois anos de mandato foi alinhadíssimo a Trump. Depois, ele viu uma virada na política americana com a eleição de Joe Biden e experimentou um isolamento ainda maior, ficou praticamente patinando nos outros dois anos.
O senhor identifica algum ponto de diferença na atual política externa em relação aos governos Lula 1 e 2?
O modelo, a matriz de inserção internacional que o Lula 3 está aplicando, é muito semelhante à de 20 anos atrás. A leitura de mundo, a leitura das potencialidades brasileiras, é muito semelhante, tanto do ponto de vista das relações aqui na região, na América do Sul, quanto na cooperação Sul-Sul e nos foros multilaterais. Alguns atores, como Celso Amorim, se repetem. Mauro Vieira, que saiu no impeachment de Dilma Rousseff, também. É quase como dizer assim: “Tinha um trabalho que foi interrompido ali”. Ele, então, retorna. Há um significado de retomada de um projeto de inserção internacional. Agora, o cenário mudou um pouco, então é necessário fazer ajustes.
O mundo não é mais o mesmo, né?
O mundo não é mais o mesmo, e mais: o Brasil não é mais o mesmo. A multipolaridade tem enfraquecido, aquela janela de oportunidade dos países emergentes, como o Brasil, também se estreitou, as guerras estão mais agressivas, há aumento do protecionismo da disputa econômica. O cenário ficou bem mais complicado do que era há 20 anos atrás. Internamente, se fores pensar, parte da elite empresarial, militar, política, setores agrários, não compartilham com interesse uma política externa com esse modelo. Por isso, vêm as críticas e vai haver muita discussão. Eu acho que a gente tem uma intoxicação ideológica muito forte, interesses setoriais, contradições do empresariado e uma opinião pública que ficou mais conservadora. Isso tudo acaba servindo como uma espécie de contrapeso a esse tipo de política externa.
Como é que o senhor vê a relação do Brasil com a Venezuela nesse governo e a recepção calorosa a Nicolás Maduro?
A Venezuela acabou se tornando uma espécie de nova Cuba. Deixa todo mundo enervado, como Cuba nos anos 70. A Venezuela acabou se tornando um ponto de conflito na América do Sul, que reverberou muito fortemente na política interna de vários países. Acho que o Brasil vai tentar encontrar o ponto de equilíbrio, de equidistância. No caso da Venezuela, é trabalhar com duas coisas: como, ao mesmo tempo, defender a democracia e a soberania dos países. Esse dilema nas relações internacionais, sempre são colocados. Outro dilema: o Brasil não entra de sola nos regimes internos dos outros países, a gente não faz isso há cem anos. Mas podemos sim atuar e trabalhar como mediador. Temos de trazer a Venezuela para próximo do Brasil e da América do Sul na tentativa também de oferecer soluções para o conflito. Agora, também nesse caso, Lula precisa recalibrar seu discurso na hora que for falar, porque uma frase, usar o termo narrativa, causou questionamento, tanto interno quanto na própria Venezuela. A questão aqui é fazer uma calibragem entre a defesa da democracia e a defesa da soberania. Não vamos derrubar o governo Maduro, isso não vai acontecer isso, mas, ao mesmo tempo, o Brasil não é o sustentáculo de seu governo.