Tenho dúvidas se Vladimir Putin, dada sua aparente frieza, se preocupa muito com isso. Mas seu bolo de aniversário de 70 anos, completados nesta sexta-feira (7), teve gosto amargo. Horas depois de o sol nascer em Moscou, o Comitê Norueguês do Nobel anunciou, em Oslo, os laureados com o Nobel da Paz. Pelo segundo ano consecutivo, dissidentes e críticos do regime de Putin foram escolhidos - no ano passado, fora o jornalista Dmitri Muratov, editor-chefe do Novaia Gazeta, um dos principais jornais de oposição ao governo e o mais independente da Rússia atualmente. Ele ganhou com a também jornalista Maria Ressa, editora do site filipino Rappler.
Neste ano, a crítica no subtexto do Nobel veio em peso contra o Kremlin - o que, de certa forma, é raro. Normalmente, o Comitê do Nobel não costuma conceder a láurea a representantes envolvidos em temas muito pulsantes na mídia. Em geral, isso até funciona como uma tática para lançar luzes sobre crises esquecidas pela comunidade internacional, como os rohingias de Mianmar ou solitários soldados da paz nos grotões africanos.
Não foi o caso de 2022, em que o Nobel vai justamente para ativistas envolvidos na principal crise geopolítica do planeta, com riscos de de chegarmos a uma guerra nuclear e ao terceiro conflito de proporções mundiais na história da humanidade.
O Nobel anunciado para o ativista de Belarus Ales Bialiatski, o Memorial, grupo de direitos humanos da Rússia, e o Centro para Liberdades Civis da Ucrânia é um duro recado não apenas contra Putin, mas a tudo o que ele representa nessa terceira década do século 21: um não ao autoritarismo, ao imperialismo, à violação do Direito internacional e ataques aos direitos humanos, entre eles o de imprensa e expressão.
Em 24 de fevereiro, Putin decidiu cometer uma guerra de agressão contra outro Estado soberano, a Ucrânia. Mas sua ação, há anos ensaiada, como se viu na Crimeia, em 2014, é lastreada por um plano de recompor as fronteiras da antiga União Soviética - senão na prática, ao menos mantendo governos títeres em sua área de influência. Nessa equação, entra Belarus, governada por Aleksandr Lukashenko, pretenso ditador, reeleito em um pleito fraudulento em 2020 e que só foi empossado mediante a garantia de tropas russas.
Os laureados com o Nobel são como frestas de luz em meio à escuridão. Esforçam-se, colocando sua cabeça a prêmio e sob risco de apodrecerem nas catacumbas dos regimes que denunciam, em trazer a público aquilo que seus governos querem esconder - em geral, violações aos direitos humanos e outras truculências. Além disso, revelam que democracia e paz não dependem apenas de esforços de governos, mas também de cidadãos comuns.
Embora poucos conhecidos por aqui, Ales e as duas organizações da sociedade civil têm um longo histórico de trabalho. Diretor da principal organização de defesa dos direitos humanos de Belarus (Viasna, que significa Primavera), o ativista de 60 anos está preso em seu país, perseguido judicialmente diversas vezes - a atual, deve-se às contestações sobre a eleição de Lukashenko.
Memorial International foi fundado há três décadas por dissidentes soviéticos que fazem questão de manter viva a lembrança daqueles que caíram sob o regime de Josef Stalin. O Judiciário russo, alinhado ao Kremlin, ordenou a dissolução do grupo, que, desde 2009 já denunciava crimes de Putin - à época, na Chechênia.
Já a ONG ucraniana, Centro para Liberdades da Ucrânia, dirigido em sua maior parte por mulheres, atua na linha de frente das investigações sobre crimes cometidos desde o início da invasão russa. A entidade faz o mapeamento de desaparecimentos forçados de ativistas e profissionais de imprensa. Nos últimos meses, o grupo tem pressionado as Nações Unidas a criar um tribunal especial para julgar violações das leis internacionais e de guerra, para julgar Putin, a exemplo do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.