Boris Johnson não é desses personagens que, simplesmente, ao virar-se a página, eles saem da vida, no caso da política, para entrar para a História. Pela extravagância de sua postura, pelo que fez e pelo deixou de fazer em Downing Street merece uma reflexão adicional na hora do adeus ao poder. Aliás, pessoas como Johnson ou Donald Trump não dão adeus. Apenas "até logo". São vaidosos demais para saírem de cena.
No caso britânico, o agora ex-primeiro-ministro, ambicioso e ainda popular, deve assombrar o governo de Liz Truss, de quem foi chefe desde o primeiro dia no gabinete, em 2019.
Não se surpreenda se, no momento em que o novo governo enfrentar dificuldades, Johnson reapareça. Afinal, apesar dos sucessivos escândalos, ele ainda é o artífice e executor do Brexit. Quando todos tentavam concluir a ruptura com a União Europeia, decidida nas urnas no plebiscito de 2016, mal ou bem, ele foi lá e fez.
Além disso, como se viu, o trumpismo não acabou quando Trump deixou a Casa Branca. O "Borismo", com o perdão da invenção, não acabará com sua saída de Downing Street nem com o apertar de mãos da rainha Elizabeth II, nesta terça-feira (5), no castelo de Balmoral, na Escócia.
Não se pode esquecer que Liz Truss foi escolhida presidente do Partido Conservador - e consequentemente primeira-ministra - em votação interna da legenda. Foram os 170 mil filiados, cerca de 0,3% da população britânica, que tomaram essa decisão. Desses, 80 mil escolheram Liz. Johnson, em 2019, foi escolhido primeiro-ministro após eleições gerais em que milhões de eleitores que votavam nos conservadores sabiam quem era seu líder - e, consequentemente, o premier.
A base do Partido Conservador que tomou a decisão entre Liz e Rishi Sunak é composta por uma elite distante do eleitor comum: dois terços dos filiados são homens, mais de 96%, brancos, e cerca de 39% têm mais de 65 anos. São também mais ricos do que o eleitorado em geral.
Liz herda um Reino Unido onde o custo de vida está elevado, a inflação bate recorde em quatro décadas, a economia sofre impactos do Brexit e se aproxima da chamada "catástrofe de inverno", o aumento do preço da energia, que já está na estratosfera. Nem falamos da guerra na Ucrânia, que desestabiliza a balança de poder na Europa. Além de todos esses desafios, Liz terá de conduzir o país até as eleições gerais de 2024, nas quais o partido sofrerá o desgaste de ser vidraça no poder há 14 anos.
A frase que a maioria dos jornais reproduziu, do discurso de despedida de Boris foi:
- Deixem-me dizer que sou como um daqueles foguetes com vários estágios que cumpriu sua função. E agora eu suavemente faço a reentrada na atmosfera para cair em um canto remoto e desconhecido do Pacífico.
Mas a que deixou boa parte dos britânicos com uma pulga atrás da orelha foi outra:
- Vou voltar ao meu arado e não oferecerei a este governo nada além do meu mais fervoroso apoio.
A referência era ao estadista romano Cincinnatus, que, tempos depois de deixar a política, retornou a Roma após líderes implorarem para que voltasse à ativa e salvasse a cidade da invasão das forças de Aequi. Ele renunciaria após cumprir sua missão e voltaria "para o seu arado".
Fiquemos com a primeira parte da história: políticos como Cincinnatus, Trump ou Johnson adoram um cenário de caos para ressurgirem das catacumbas como salvadores da pátria.