Na sexta-feira (22), o mundo suspirou ao observar o primeiro acordo entre Rússia e Ucrânia desde o início da guerra, em 24 de fevereiro: os dois países, embora seus representantes não tenham apertado as mãos, assinaram um tratado que liberou a exportação de cereais bloqueada pelo conflito.
Não era um acordo de paz ou cessar-fogo, todo mundo sabia. Mas houve uma esperança que, infelizmente, não durou 48 horas.
No domingo (24), a Rússia bombardeou Odessa, importante cidade portuária do Mar Negro, atingindo instalações de processamento de cereais, segundo a Ucrânia. O porto foi atacado quando estavam em processamento cargas de cereais.
A Rússia nega o ataque.
Nada de novo no front: a Rússia mente, tergiversa. Aliás, como fizeram antes e durante o confronto diversas vezes.
Para ficarmos no "antes": quando o mundo inteiro via o acúmulo de tropas do Kremlin nas barbas da Ucrânia, em novembro, como uma ameaça iminente de invasão, o presidente Vladimir Putin dizia que se tratava apenas "operações militares de rotina".
Horas antes de seu primeiro soldado ultrapassar as fronteira com a Ucrânia na madrugada do dia 24 de fevereiro, seus diplomatas estavam em Nova York negociando... a paz, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU). E, no discurso oficial, entrando um pouco no "durante" do conflito, Putin chama de "operação militar especial" o que, na prática, até as paredes do Kremlin, sabem se trata de uma GUERRA!
Conforme o acordo assinado na sexta-feira (2), com mediação da ONU e da Turquia, a Rússia concordava em não atacar portos, enquanto houvesse embarque de grãos. O objetivo seria permitir a exportação de cereais que estão bloqueados nos portos, estimados em 25 milhões de toneladas e cujo valor de estoque chega a US$ 10 bilhões.
O bloqueio de navios de guerra russos e minas implantadas pela Ucrânia na área elevou os preços dos grãos e motiva uma alerta de crise alimentar, estimada em 47 milhões de pessoas em todo o mundo.
O ataque a Odessa mostra, como em dezenas de vezes, que a Rússia mente.
O outro fato importante dessa conversa é a Turquia, como ator relevante e pouco comentado na mediação entre Rússia e Ucrânia. O regime do sultão Recep Erdogan tem se apresentado, não é de hoje, como a voz de interlocução de temas importantes entre Ocidente e Oriente. Lembrem-se que, na crise nuclear do Irã, aquela em que Brasil tentou mediar, sem sucesso, uma solução para a tensão nuclear, a Turquia já era peça importante.
Agora, o país de Erdogan se colocou, sem ouvir União Europeia e Estados Unidos, no diálogo entre Rússia e Ucrânia, posição em que foi lastreado pelas Nações Unidas. A Turquia virou fiadora do acordo dos grãos. O acerto na sexta foi feito no Palácio Dolmabahçe, em Istambul, na presença do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, e de Erdogan.
A Turquia tem altura geopolítica para tanto: o país controla o Estreito de Bósforo, ligação marítima entre Europa e Ásia.
E tem buscado uma postura pragmática no conflito: o país é membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e como tal abriga a importante base aérea de Incirlik, e, ao mesmo tempo, tem se aproximado da Rússia - Erdogan não esconde ter Putin como modelo de gestor, centralizador e autocrata.
Na falta de interlocutor melhor - ou mais forte, algo que a ONU não consegue ser -, o sultão da Turquia, um protoditador, tem encontrado janela de oportunidade para ganhar peso político no mundo. E, diga-se de passagem, ofuscar as violações aos direitos humanos e as rupturas democráticas de seu governo.