Putin e Cirilo I, líder da Igreja Ortodoxa Russa, têm muito mais em comum do que o primeiro nome, Vladimir. Ambos também nasceram em São Petersburgo, nos tempos soviéticos, quando a cidade se chamava Leningrado. Dizem que o pai de Cirilo teria batizado o pequeno Putin. E até que Cirilo I, cujo nome de nascimento é Vladimir Mikhailovich Gundyayev, teria sido agente da antiga KGB, o serviço secreto soviético, assim como o atual presidente.
Mas a simbiose entre o senhor da guerra do Kremlin e o chefão da mais poderosa instituição religiosa da Rússia têm raízes ainda mais profundas do ponto de vista político e ideológico, que ficam explícitas no conflito na Ucrânia. O patriarca dá o lastro moral para "operação militar especial", o eufemismo adotado por Putin para ocultar o verdadeiro nome do que ocorre no país vizinho: guerra.
Cirilo foi o primeiro patriarca eleito após a queda da União Soviética, herdando de seu antecessor, Aleksei II, uma igreja que recuperava seu papel central no Estado russo, após o fim do ateísmo oficial. Logo, suas intenções casaram com as aspirações geopolíticas de Putin de tornar a Rússia grande de novo, após anos de crise econômica com a implosão soviética. Há dois marcos dessa afinidade: quando Cirilo I apoiou a eleição do então candidato Putin à presidência, em 2012, e depois, quando, já eleito, o presidente apadrinhou a comunhão entre os dois ramos da Igreja Ortodoxa Russa: a Igreja Ortodoxa Russa no Exterior e o Patriarcado de Moscou. Mais tarde, Cirilo foi nomeado patriarca de Moscou e de toda a Rússia, passando a ser o pastor de mais de 140 milhões de fiéis.
Essa união entre política e religião levou a um racha intramuros na Igreja Ortodoxa, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2014, e anexou a região da Crimeia. A Igreja Ortodoxa ucraniana se afastou do Patriarcado de Moscou. Em 15 de dezembro de 2018, o chamado "Concílio de Reconciliação" levou à unificação entre o Patriarcado de Kiev, até então ligado ao de Moscou e a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana. Ou seja, assim como os conflitos na Ucrânia - da Crimeia até hoje - separam duas sociedades até então irmãs, com história, cultura e origens comuns, as guerras também provocaram rupturas entre credos que eram unidos desde o cisma do Oriente, em 1054 - quando essas igrejas se separaram do Vaticano.
Para Cirilo I, essa é uma guerra do bem contra o mal, uma narrativa também muito próxima da de Putin, quando diz que enviou tropas para "salvar" os russos étnicos do Donbass, de que a Ucrânia historicamente é território russo ou de que o Ocidente quer "perverter" Kiev. Aliás, sobre "perverter" o país vizinho, Cirilo I chegou a dizer que esse é um conflito para "a salvação russa", que esta é "uma guerra entre valores da Rússia e o Ocidente" e que para se juntar "ao clube desses países, você precisa fazer uma parada do orgulho gay". A união entre Igreja e Estado, aliás, não é nova. No período imperial, czar e patriarca eram quase um só. Não à toa, o último monarca, Nicolau II, executado pelos bolcheviques em 1917, foi elevados aos altares ortodoxos em 2000.