A rotina de Anatoliy Tkach, encarregado de negócios da embaixada da Ucrânia em Brasília, mudou drasticamente desde o dia 24 de fevereiro, quando a Rússia iniciou o ataque a seu país. Dois anos depois de chegar ao Brasil, ele se converteu no mais alto representante do governo de Volodimir Zelensky na nação, após o período do embaixador Rostyslav Tronenko se encerrar, em dezembro do ano passado. Anatoliy passou a ser, involuntariamente, o porta-voz no Brasil da Ucrânia em tempos de guerra.
Aos 44 anos, ele está em sua segunda passagem pelo país, onde atuou antes entre 2012 e 2017. Em português perfeito, o encarregado de negócios já cobrou que o governo do presidente Jair Bolsonaro condenasse os ataques e que aplicasse sanções econômicas à Rússia. Ele está desde a semana passada no Rio Grande do Sul, onde acompanha o desempenho da delegação de mais de 250 atletas do país nas Surdolimpíadas, que ocorre em Caxias do Sul e mantém contatos com autoridades, empresários e com a comunidade ucraniana no Estado. Ele estima em 600 mil o número de descendentes de ucranianos que vivem no Brasil. Em entrevista à coluna, pessoalmente, em um shopping de Porto Alegre, Anatoliy apresentou a versão ucraniana do conflito, falou da preocupação com o pai, que decidiu permanecer em Kiev e sobre as perspectivas sobre o futuro da guerra.
Como tem sido a sua atuação no Brasil?
A rotina mudou a partir do dia 24 de fevereiro (início da invasão da Ucrânia pela Rússia). Eu diria que tudo mudou no dia 24. Para mim, em particular, eu tinha uma vida comum, cotidiana. Por outro lado, esses 70 dias de guerra passam como se fosse apenas um por causa da intensidade do trabalho. Os funcionários da embaixada quase não tiveram folga durante esses 70 dias.
O senhor tem viajado pelo país?
Não estava viajando, só agora que comecei, tendo a oportunidade de conhecer o Rio Grande do Sul, durante as Surdolimpíadas, das quais participam nossa delegação, que é uma das maiores. São 250 pessoas na delegação ucraniana. E já começam a ter bons resultados. Nos primeiros dias, ganharam 15 medalhas. Eles, nesse momento, têm uma responsabilidade maior porque todo o país está acompanhando os nossos atletas e todos estão torcendo, querendo a vitória. Cada medalha é uma vitória para o povo ucraniano.
O senhor está em contato com autoridades gaúchas e empresários?
Sim, estou tendo. Esse momento é muito complicado. Além disso, há o fluxo migratório. Mais de 4,5 milhões de ucranianos saíram do país. Cerca de 7,5 milhões estão deslocados internos. Esse total representa um quarto da população do país.
Há possibilidade de o Brasil receber refugiados?
As pessoas saíram, mas a maioria quer ficar perto da Ucrânia para voltar logo, quando tudo terminar. Nesse momento, já voltaram mais de 1,4 milhão de pessoas para a Ucrânia.
O senhor deixou família lá, o seu pai, em Kiev?
Tenho meu pai lá. Falamos com ele com frequência. Na última vez em que falei, ele não quer sair. Eu até o convidei para passar "férias" no Brasil. Mas ele tem trabalho lá, mora com a esposa. Enquanto conversávamos, foi acionado o alarme antiaéreo. Isso é sempre um susto. Sabemos que os mísseis atingem também os prédios residenciais. Ninguém pode dizer que está seguro. Esse ano ele vai completar 70 anos. É professor de Ciências Políticas da Universidade Nacional de Kiev.
O senhor tem algum cuidado extra com relação a sua segurança desde o início da guerra?
A partir do momento em que a guerra começou, a Polícia Federal reforçou a segurança da embaixada. Nos primeiros momentos, o nosso funcionário responsável pela segurança solicitou também reforço do lugar onde moro.
O senhor chegou a falar com presidente Volodimir Zelensky?
Temos contato no nível de escritório do presidente. Com ele, não cheguei a falar. Mantemos relações de trabalho. Agora, a nação inteira se uniu para apoiar o presidente. Antes da guerra, como em qualquer outro país, havia pessoas que o apoiavam e outras, que não o apoiavam. Mas, nesse momento, todos se uniram para apoiá-lo, porque ele é o líder do país que está em guerra contra uma potência muito grande.
Costuma-se dizer que russos e ucranianos são povos irmãos.
Não é assim. Cerca de 91% dos ucranianos não consideram o povo russo como irmão. A Rússia tem essa narrativa de que são o mesmo povo. Mas 91% dos ucranianos rejeitam essa narrativa. O pretexto para a invasão era para proteger os ucranianos que falam russo do restante. Esse foi o pretexto, mas, nesse momento, todos os ucranianos estão lutando contra a Rússia, independentemente da língua que falam.
Mas o cidadão russo comum não tem culpa pelas decisões de governo de Vladimir Putin. Há uma rejeição ao cidadão russo?
É uma responsabilidade compartilhada. Cerca de 79% dos russos apoiam essa guerra contra a Ucrânia. Não é só uma pessoa, mas também a mídia que está criando essa propaganda, as autoridades, todos apoiam o discurso do presidente. E o povo russo está apoiando. Mas, claro, temos de entender que há propaganda, censura, que foram desligadas redes sociais e que pessoas que dizem a verdade sobre a guerra recebem multas elevadas ou penas de 15 anos de prisão.
O que a Ucrânia espera do governo brasileiro?
O governo brasileiro tomou uma posição nas organizações internacionais, tanto no Conselho de Segurança quanto na Assembleia Geral da ONU, e repudiou essa guerra. Repudiou o ataque contra a Ucrânia. Isso é muito importante, porque a voz do Brasil está sendo ouvida no mundo como membro não permanente do Conselho de Segurança.
Então, agora o senhor acha que está ok a posição brasileira? Porque, em um primeiro momento, o senhor criticou o fato de o presidente brasileiro ter dito que o país se manteria neutro no conflito.
Claro que gostaríamos de ter maior apoio do Brasil, mas estamos vendo também que solicitamos ajuda humanitária, e o Brasil enviou uma carga por avião da FAB, pela qual agradecemos muito. Nesse momento, segundo as organizações internacionais, 15,7 milhões de ucranianos precisam de ajuda humanitária. E nós, outra vez, pedimos ao governo brasileiro ajuda humanitária. Estamos pedindo mais porque as necessidades continuam. O que pedimos são basicamente alimentos e medicamentos. É necessário alimentar as pessoas que foram deslocadas ou que estão em zonas de guerra.
O senhor tem conversado com o Itamaraty ou com o Planalto?
A embaixada está em contato constante com o Itamaraty. Estamos tendo contatos em todos os níveis de governo, tanto no Executivo quanto no Legislativo.
Como tem sido a recepção?
Todos os líderes do Legislativo expressaram publicamente o seu apoio à Ucrânia. Sentimos o apoio muito grande do povo. As pessoas, quando veem que somos da Ucrânia, se aproximam e expressam solidariedade. Durante reuniões, muitas autoridades expressam solidariedade.
O que o senhor acha que vai ocorrer a partir de agora na guerra?
É complicado, mas o fim da guerra depende só de um lado. Estamos negociando. Fizemos uma proposta sobre as garantias, que previa que os membros do Conselho de Segurança e alguns países do mundo, em primeiro lugar nossos vizinhos mais próximos, garantissem nossa segurança. Nessas garantias não entram os territórios temporariamente ocupados da Ucrânia até 24 de fevereiro. Sobre a questão da Crimeia, propomos negociar durante 15 anos sem aplicação da força para a resolução dessa ocupação.
E o Donbass, onde ficam as regiões separatistas de Donetsk e Luhansk?
Em primeiro lugar, vamos negociar. Para parar a guerra, queremos as garantias dentro dos territórios até 24 de fevereiro. Depois, começa o processo de negociação. O importante é para a guerra para poder negociar. No Donbass, os presidentes negociariam o status dessas regiões de Donetsk e Luhansk, mas não temos recebido resposta formal por parte da Rússia, e eles não aplicaram o cessar-fogo durante as negociações.
Pode-se dizer que as negociações esfriaram?
Não temos retorno da Rússia. É verdade. O primeiro ataque contra a capital ucraniana foi defendido pelas forças armadas ucranianas. As forças russas recuaram, se reabasteceram, se reagruparam e entraram com uma ofensiva pelo Donbass.
Por que é tão importante, para os ucranianos, pronunciar o nome da capital como Kyiv e não Kiev?
No Brasil, estão usando a transliteração da capital como Kiev, mas o correto em ucraniano é "Kyiv". Para nós é muito importante o significado. Até temos uma campanha: "Kyiv e não Kiev". Os russos chamam Kiev. O nome do fundador da cidade é Kyi, não é Kiev. Isso é indiscutível. Há uma lenda que foram três irmãos que chegaram à cidade (Kyi, Schek e Khoryv e sua irmã Lybid). O mais velho deles, Kyi, deu nome à capital. Há uma campanha internacional para que muitos aeroportos e a mídia internacional comecem a chamar Kyiv. Vais encontrar essas evidências na mídia americana, que já mudou. É um símbolo da unidade, é ucraniano. Falamos e conversamos em ucraniano e, quando saímos ao Exterior, vemos que estão chamando os nomes das nossas cidades em russo. Isso vem da antiga URSS, quando tudo era em russo. Mas esse tempo já passou há mais de 30 anos.
O senhor tem recebido muita gente ainda interessada em lutar junto às forças ucranianas?
A embaixada não está contratando. Recebemos os e-mails das pessoas que querem se unir a essa legião internacional, mas respondemos que não fazemos esse trabalho. Talvez as pessoas acabam buscando outros caminhos. Temos um apoio enorme dos brasileiros, e cada um está oferecendo o que pode: as pessoas nos procuram para dizer que estão prontas para receber os ucranianos em suas casas, outras procuram porque querem ser enfermeiras lá. Há muita solidariedade do povo brasileiro.