GZH obteve, com exclusividade, o relato de um ucraniano que era diretor de uma empresa multinacional e decidiu pegar em armas para defender seu país diante da invasão da Rússia. O contato foi feito pelo Telegram, aplicativo de conversação comumente utilizado pelos ucranianos.
Por questões de segurança, não vamos identificá-lo nem detalhar sua localização. Ele participa, neste momento, das forças de defesa do país como um civil que pegou em armas.
A seguir, seu depoimento:
"Eu gerenciava as operações de uma empresa desde 2006, na Ucrânia. Era uma multinacional com mais de 200 escritórios em 50 países. Sua sede é nos EUA. Trabalho nessa companhia desde 2001, e fui crescendo na empresa até 2006, quando me tornei gerente e, em 2009, diretor.
Era responsável pelas operações na Ucrânia. Falo russo e ucraniano. Nasci na Ucrânia, tenho 44 anos e nunca fui um militar, nem no período soviético. Quando a Ucrânia conquistou a independência, havia o serviço militar por um ano, mas não o fiz. Não acreditava que aprenderia alguma coisa sobre como proteger meu país, porque, por um lado, não acreditava na máquina militar ucraniana.
Sempre me mantive distante do serviço militar. Eu me sentia um cidadão do mundo, não um homem da Ucrânia. Por todos esses anos, estive trabalhando, viajando pelo mundo por causa do trabalho. Viajei muito, Canadá, toda a Europa, não há um lugar do continente que eu não tenha visitado. Viajava a negócios. Queria conhecer novos lugares, novas culturas e, provavelmente, por isso eu nunca me identifiquei como um patriota.
Conhecia muitos outros lugares no mundo melhores para viver, para trabalhar, para tudo, percebi que não estava ligado a algum país específico. Por um tempo, me mudei para um outro país, gostei de viver lá, economia forte, com boa proteção de direitos humanos etc. Não sou um típico homem de escritório. Sempre mantive muito boa condição física. Sempre pratiquei diferentes modalidades de esportes, mas nunca associadas com treinamento de combate, com tiro. Jogava tênis, nadava, corria, como amador. Quando houve a revolução na Ucrânia, o ex-presidente Viktor Yanukovych se entregou à Rússia, dizendo que não ia ingressar na União Europeia.
Aquele momento, para mim, foi um desastre. Percebi que não importava quanto eu nadasse, corresse, isso me fazia absolutamente vulnerável. Qualquer pessoa poderia ir a minha casa, com um rifle, abrir a porta, e eu não poderia proteger a minha mulher e meus filhos. Aquele foi o momento da verdade. A Ucrânia estava completamente destruída naquele momento.
Os investidores não estavam aqui, havia sangue nas ruas. Minha família, minha mulher e filhos, eu não podia protegê-los, independentemente da minha boa condição física. Tive de manter as operações da minha companhia, apesar desse conflito interno. Naquele momento, sentei em casa. Não sabia o que ia acontecer, se andasse pelas ruas, se me matariam, como fizeram com qualquer pessoa que se opunha à Rússia. Mas eu ia ao escritório para manter as operações, era no centro de Kiev.
Basicamente, 2014 foi muito difícil para mim emocionalmente por diferentes ângulos. Depois que tudo voltou mais ao menos ao normal, não havia mais sangue nas ruas, e o governo havia sido eleito pela população. A vida voltou ao normal. A primeira coisa que eu fiz depois daquilo foi reconsiderar minha relação com o que eu fazia, como fazia e porque eu fazia. Havia praticado muitos esportes, mas nada na prática protegia minha família, meus amigos, o que era importante pra mim.
Em 2015, eu fui treinar um estilo de luta de combate russa, uma arte marcial. Ao mesmo tempo, imediatamente queria aprender a atirar. Nunca havia atirado. Acho que passei um período da minha vida percebendo que eu tinha algumas práticas que, se dias decisivos viessem de novo, eu estaria preparado para proteger minha família, meus amigos, meus parentes, a mim mesmo e meu país, se necessário. Muitos homens aprenderam a atirar naquele momento.
Todo mundo que me conhece sabe tudo o que fiz, treinei muito. Em dezembro, tive um encontro com um dos meus mais próximos amigos, que estava trabalhando para o governo ucraniano. Ele havia recebido informações de que a Rússia estava planejando a invasão. O plano estava preparado, eles planejaram a invasão a partir de diferentes locais, exatamente o que está acontecendo agora. A Rússia tinha esse plano havia muito tempo.
Minha família já estava em férias, eu estava terminando meu trabalho. Quando percebi que isso era muito sério, visitei minha família por uma semana na Europa. Sabia o que fazer. Minha esposa disse:
— Isso é impossível, temos coisas a fazer, as crianças têm de ir para a escola.
Eu tinha a ideia de que os dias que viriam não esqueceríamos. Precisava estar em Kiev e defender minha cidade. Para mim, essa é a coisa mais certa a fazer. Estou com medo de morrer. Quando a gente percebe que tudo que fomos acabou, essa cidade e o país, que eles invadirão, vão matar pessoas, tirar nossa liberdade, dinheiro, o direito das mulheres, que eles vão nos destruir, e, mais importante, vão destruir todo o nosso futuro.
A Ucrânia é uma nação livre. Foi uma decisão difícil. Mas tomei decisão, estou preparado. Não estou aqui para morrer, mas para viver. Estou preparado para dar a minha vida pelo futuro desse país. Mas estou fazendo isso também pelos meus filhos e pela minha esposa."
Falta comida em Lviv
Sétima maior cidade da Ucrânia, Lviv ainda não foi bombardeada, mas já sente os efeitos da guerra. Nos supermercados, algumas prateleiras estão vazias.
Falta massa, arroz, água, e mesmo itens de higiene começam a ficar escassos. O toque de recolher, em vigor entre 22h e 7h, obriga as pessoas a buscar mantimentos durante o dia, o que gera fila em estabelecimentos e corre-corre no final da tarde. Os saques em caixas eletrônicos também são limitados.
Sirenes
Outro cenário que passou a fazer parte da rotina dos moradores são as sirenes antiaéreas. Na sexta-feira, elas voltaram a soar às 10h45min, 15 minutos antes do horário combinado para a partida do comboio brasileiro. Todos do grupo tiveram de buscar o abrigo no subterrâneo do hotel.
O clima era quase de partida e chegou a preocupar quem estava ansioso para sair da Ucrânia. Apesar de mais um momento de tensão, não houve bombardeios à cidade, que permanece sendo um refúgio relativamente seguro em meio ao caos do resto do país.