Ainda que a apuração nos Estados Unidos não tenham terminado, há algumas conclusões já possíveis sobre o processo eleitoral.
Quando a gente olha o mapa eleitoral americano, ele está colorido de forma muito semelhante ao quadro de 2016. Por enquanto, a única diferença é o Arizona - onde, tudo indica, haverá vitória surpreendente de Biden. Nunca um republicano venceu as eleições nos EUA sem o Arizona. E um democrata não vencia no estado desde Bill Clinton em 1996.
A eleição também mostrou uma disputa mais apertada do que apontavam as pesquisas. Os institutos indicavam uma vantagem para Joe Biden maior em Estados-chaves nas últimas semanas. As empresas se preveniram para não repetir as falhas de 2016 e mesmo assim subestimaram a força dos eleitores de Donald Trump.
Estamos à espera dos resultados em Geórgia, Pensilvânia, Michigan e Wisconsin - são 62 delegados em jogo nesses quatro Estados. Trump ganhou em todos eles em 2016. Se Biden vencer em Wisconsin, Michigan e confirmar Nevada e Arizona, Biden pode perder inclusive na Pensilvânia e mesmo assim chegar à Casa Branca.
A eleição ficaria pela batalha jurídica na Pensilvânia. Desses quatro estados, com exceção da Geórgia, que fica mais ao Sul, todos estão localizados no chamado Cinturão da Ferrugem. Ou seja, de novo o Meio-Oeste decide quem vai para a Casa Branca. A região sofreu com a crise econômica de 2008, o voto do trabalhador, homem, heterossexual, sem Ensino Superior foi determinante para a vitória de Trump em 2016. É curioso porque, no início do século, esses eram Estados democratas: Michigan, joia da coroa da indústria automobilística, é emblemático. O trabalhador cansou das promessas dos democratas, que têm nos sindicatos sua base eleitoral. Essas pessoas viram seus empregos indo embora para o México ou para a China. Assim, Trump seduziu o eleitorado dessa região com a promessa de "job, job, job" ("trabalho, trabalho, trabalho") Há também uma aproximação identitária: Trump é modelo desse americano. Biden, nos últimos meses, fez comícios em sindicatos, disse que o poder do povo estava nessas organizações. Nas próximas horas, saberemos se esse esforço foi suficiente ou não para fazer o jogo virar.
Tudo indica que a Pensilvânia será a Flórida de 2000, quando aquela eleição foi para a Justiça depois que a campanha do democrata Al Gore perdeu para George W. Bush naquele Estado. A disputa foi para o tribunal local, depois para a Suprema Corte, que mandou parar a recontagem, fazendo valer a apuração até então e dando a vitória a Bush. Em 2000, demorou mais de 30 dias para se saber quem foi eleito. Se for judicializada a eleição, a Pensilvânia será o primeiro campo de batalha desta vez.
Perder a Flórida foi um balde de água fria na campanha democrata em 2020, assim como, em 2016, a derrota de Hillary Clinton começou ali. O voto latino conservador, do imigrante cubano, foi decisivo. Trump conseguiu colar nesse eleitor a narrativa de que Biden é socialista.
A polarização social que já existia em 2016 - se agiganta em 2020. Há um abismo ideológico entre os eleitores democratas (urbano, com ensino superior, a favor de agendas progressistas, como o aborto, controle de armas e ambiente) e os republicanos (rural, sem ensino superior, contrário ao aborto, a favor de armas). Biden teve percentual maior de votos do que Hillary em 2016 em algumas regiões, e Trump também ampliou a vantagem em seus redutos. Isso mostra polarização extrema.
A religião também pesa, especialmente nesse desempenho de Trump no interior americano. Houve muita adesão à candidatura republicana de núcleos hispânicos no chamado Cinturão Bíblico, mas também na Flórida.
Foi desnecessária a fala de Trump, por volta das 2h da manhã desta quarta-feira (4). Os republicanos já viviam uma onda favorável. Não precisava falar em fraude, em uma tentativa de ganhar no grito. Seu pronunciamento ocorreu depois da fala de Joe Biden, em que ele se mostrava otimista, mas pedia cautela. O temperamento de Trump é conhecido: ele precisava dar uma resposta, e para o presidente, a melhor reação é sempre o ataque. Naquele momento, a Fox News, que tem uma cobertura pró-republicanos, se antecipou às demais emissoras de TV e dava vitória de Biden no Arizona. Trump estava indignado. Perdia em um Estado importante e isso era reconhecido pela própria Fox News, que ele vê como uma extensão de seu governo. Por trás da ameaça de mandar parar a contagem e levar a eleição para a Suprema Corte, estava o temor de perder a vantagem em Estados-chave em decorrência dos votos pelo correio.
Quando acompanhava o início da contagem, falava-se de um provável "Texas dream" ("sonho do Texas"), a partir de uma vantagem dos democratas no início da apuração. Foi mesmo apenas um sonho, ou melhor, uma miragem. Logo que os votos do interior, rural, começaram a entrar, o Estado foi tingido de vermelho, como é tradição. A boa votação dos democratas, no entanto, não deixa de ser novidade. A demografia do Estado mudou de característica - muitos eleitores latinos, com posicionamentos progressistas, chegaram à região, assim como de eleitores de outros Estados, provenientes de grandes cidades.