O coordenador do programa de pós-graduação em Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, Oliver Stuenkel, que participou da Conferência sobre Segurança, em Munique, encerrada no dia 17, surpreendeu-se com a ausência de países sul-americanos no evento, o principal sobre geopolítica global.
O tema da Venezuela foi onipresente, mas nenhuma autoridade regional estava lá. Em outras palavras, a crise que pode levar à derrocada do regime de Nicolás Maduro estava sendo discutida por generais e líderes civis de EUA, China e Rússia. Na entrevista a seguir, ele traça cenários possíveis para a Venezuela e como um eventual conflito na região pode desestabilizar o continente.
O que pode acontecer neste sábado na Venezuela?
Os militares brasileiros deixam muito claro que não existe a ideia de atravessar a fronteira. Minha expectativa é de não haverá muita tensão na fronteira com o Brasil. Na fronteira com a Colômbia, tudo depende das forças armadas venezuelanas. O grande desafio para Maduro é evitar uma situação na qual ele precise pedir algo oneroso às forças armadas e elas simplesmente digam: “Não vamos fazer isso”. Algo que as forças armadas tenham de dizer: “Estamos com você, mas o que você está nos pedindo é algo que, para nós, é muito complicado”.
Dê um exemplo?
Atacar caminhões que estejam entrando no país com produtos humanitários, com venezuelanos já obtendo acesso a ajuda, uma confusão na fronteira, uma situação difícil, que possa exigir que as forças armadas reprimam violentamente muitas pessoas, várias das quais possam ser estrangeiras. Uma situação em que as forças armadas possam ver riscos, custos, onde possa haver confronto com tropas estrangeiras. Maduro quer evitar ao máximo alguma situação que possa gerar o risco de as forças armadas dizerem: “Não, a gente não vai fazer”. Nesse momento, acabou o governo.
Como a questão da Venezuela foi discutida na Conferência sobre Segurança de Munique?
O tema surgiu o tempo todo. Foi um debate estranho porque havia americanos falando com alemães, franceses, espanhóis e canadenses. Todo mundo falando sobre a Venezuela sem nenhuma participação sul-americana. Isso simboliza como a região se tornou irrelevante sobre a questão venezuelana. Representa o fracasso da política brasileira. De longa data. O Brasil tinha como objetivo “cuidar da região”. Isso era visto pelos Estados Unidos como algo muito positivo. O Brasil claramente fracassou nisso. A gente precisa olhar o que está acontecendo em Washington, Pequim e Moscou para prever o que vai acontecer na Venezuela.
A sua percepção é de que países de fora da América do Sul estão cuidando de um assunto que deveria nos dizer respeito?
Criou-se um vácuo de poder. A partir da metade dos anos 1990, o Brasil começou a ter uma atitude muito ativa na gestão de crises na região: resolveu uma tentativa de golpe no Paraguai, mediou a crise entre Equador e Peru. Há uma série de casos nos quais o Brasil assumiu a liderança. Os EUA viam isso com bons olhos. Bill Clinton, George W. Bush tinham outros problemas no Oriente Médio, com a China. Quando o Brasil sinalizou: “Ó, Washington, não se preocupe que a gente está cuidando da região aqui”, isso foi visto como algo positivo. Mas, a partir de 2012, quando todo o mundo percebeu que a situação na Venezuela era insustentável, houve a percepção de que o Brasil não teria capacidade, sobretudo depois de 2013. A partir desse momento, abriu-se espaço para outros atores, que chegaram lá em função desse vácuo de poder. Agora, China, Rússia e EUA são três grandes atores envolvidos na crise, com o Brasil basicamente atuando em modo reativo.
Maduro quer evitar ao máximo alguma situação que possa gerar o risco de as forças armadas dizerem: 'Não, a gente não vai fazer'
OLIVER STUENKEL
Pesquisador
A conferência em Munique vê cenários na Venezuela semelhantes às guerras na Líbia?
Eu me surpreendi com a naturalidade com a qual a Venezuela apareceu nas conversas com generais russos, americanos e chineses. Na palestra de abertura, em menos de 15 minutos, foi mencionada. Tive um almoço com diplomatas europeus e americanos que listaram as opções: como a Líbia, intervenção estrangeira com guerra civil depois; como o Egito, com eleições livres e golpe de Estado depois; como o Congo, um conflito de baixa intensidade, com vários grupos que dominam certas regiões; como a Tunísia, no caso mais saudável, uma situação de transição para democracia. E há uma quinta opção, a manutenção de Maduro no poder, que é uma espécie de cenário cubano. Mas muita gente em Munique descartou a possibilidade de que Maduro possa se manter.
Há um risco real de haver um conflito na América Latina. O governo brasileiro tem consciência disso?
Precisamos encarar uma realidade que acho que não chegou ao Brasil. Em qualquer debate sobre conflitos no mundo, sobre possíveis guerras civis, catástrofes humanitárias, a América do Sul sempre aparece a partir de agora. Há muito tempo não tínhamos essa situação. Havia, nos anos 1980, situações de crise humanitária, de guerra civil na América Central, mas a questão venezuelana, hoje, é vista como muito séria, sobretudo em função da atuação russa e americana. É um tema com sérias implicações para o interesse nacional brasileiro. Acho pouco provável um engajamento militar americano a essa altura, mas também não dá para se descartar. Seria um erro não se preparar para esse cenário. É um grande desafio e parece acertado que o Mourão (vice-presidente Hamilton Mourão) assuma um papel mais visível. Ele é uma pessoa que, me parece, entende melhor a situação do que o chanceler (Ernesto Araujo).
Um conflito na América Latina desequilibra todo o cenário de retomada da economia brasileira, pois atrairá para região um foco de instabilidade muito grande. Quais os riscos?
O Brasil se vê meio longe do resto da América do Sul. Mas, de fora, há uma percepção de que é uma região muito integrada, o que, na verdade, não é. Lembro quando o ebola começou lá perto de Guiné, os pais de alguns dos alunos da FGV pediram para cancelar um intercâmbio que tínhamos com a África do Sul. É como dizer: "Não vou para Paris por causa da Guerra na Iugoslávia nos anos 1990". São milhares de quilômetros. Da mesma maneira, alguém que olha da Europa para a América do Sul, isso acaba influenciando também em como o Brasil e todo o continente é visto. Isso afeta (a percepção do mundo). A chegada de migrantes em um cenário de conflito também pode aumentar bastante.