
Três policiais de um dos mais respeitados departamentos de polícia dos Estados Unidos, o de Miami, na Flórida, estão em Porto Alegre para troca de experiências com agentes da Polícia Civil gaúcha na abordagem de questões de gênero e violência doméstica. Durante quatro dias, o sargento Pierre Cardonne e os agentes Latrice Payen e Moise Joseph conversaram com cerca de 50 delegados e inspetores na sede da Academia de Polícia Civil (Acadepol).
Comparações entre as duas realidades são difíceis, por várias diferenças: legislações, questões sociais, níveis de criminalidade, efetivos das corporações e populações entre as duas cidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, o departamento de polícia que atua nos municípios é subordinado à prefeitura. Aqui, está sob ordem do Estado. Lá, não há divisões entre polícias civil e militar. O patrulhamento das ruas e a investigação são feitos pela mesma corporação em nível municipal.
Apesar das diferenças, a diretora-geral da Acadepol, delegada Elisangela Melo Reghelin, destaca a troca de experiências como exercício de "polícia comparada".

— Tivemos experiências com o serviço secreto, crime organizado, lavagem de dinheiro, crimes cibernéticos, trocamos experiências com a polícia da Noruega sobre interrogatório, e estamos em tratativas com o pessoal da França. A Polícia Civil está preocupada com questões sociais e com aperfeiçoamento em investigação, na área de tecnologias e nas relações institucionais — explica.
A vinda dos instrutores de Miami é uma parceria com o Departamento de Estado dos EUA, por meio do consulado americano em Porto Alegre. Após a aula de terça-feira, os agentes Cardonne, Latrice e Moise conversaram com a coluna.
Que tipo de conhecimento os senhores dividiram com os policiais gaúchos?
Pierre Cardonne — Basicamente, fomos convidados a vir aqui para trocarmos informações entre os dois países. Para que possamos construir uma parceria. Violência doméstica e de gênero é um problema global. Não apenas um problema de vocês, em Porto Alegre, mas também nos EUA e no mundo. Então, dividir informações é importante para combater esse crime terrível.
Quais são os tipos de violência doméstica e de gênero frequentes na região de Miami?
Cardonne — Há coisas como estrangulamento.
Latrice Payen — Estatisticamente, uma em cada três mulheres é abusadas fisicamente. Uma em cada cinco é morta em casos de violência doméstica. Quando falamos de violência doméstica, é comum o uso de palavras agressivas contra mulher ou crianças. Mas, em alguns casos, também há homens vítimas de violência doméstica.
O que vocês sabem sobre as polícias no Brasil?
Cardonne — Sabemos que há diferentes forças policiais, com diferentes funções. Sabemos que aqui, na Polícia Civil, eles são investigadores. Em contraste com os EUA, onde as diferentes especialidades policiais atuam junto, em uma só corporação. A maneira como treinamos nos EUA é diferente do Brasil, mas as ideias e as práticas são muito semelhantes.
Uma discussão que volta e meia reaparece no Rio Grande do Sul é sobre a unificação das corporações. O que o senhor pensa em relação a esses modelos, baseada na sua experiência de um departamento único em Miami?
Cardonne — O problema é que temos leis diferentes. A legislação no Brasil pode facilitar para que haja diferentes forças policiais. Em oposição às leis nos EUA, que facilitam a existência de apenas um departamento. Nos EUA, focamos em agentes que fazem patrulha (nas ruas). Ele começa (a carreira) assim, e depois costuma avançar. Você precisa ter experiência (para passar para o nível da investigação). O formato das leis aqui, a maneira como se pratica (o policiamento) aqui, talvez seja melhor haver essa diferença entre departamentos.
No Brasil, negros muitas vezes são tratados como suspeitos a priori durante uma abordagem policial. Miami tem uma comunidade com muitas diferenças raciais, sociais e ainda a questão dos imigrantes. Como vocês fazem a abordagem policial?
Cardonne — Em Miami, embora (esse problema) esteja presente, não é forte por causa do caldeirão cultural. No entanto, isso acontece? Sim, acontece. Mas nossa sociedade em Miami é tão misturada, multicultural: você tem negros casados com brancos. Todos os tipos de raças convivem juntos. Há alguns casos, mas não é muito comum em situações de violência doméstica.
Moise Joseph —Depende da cultura, educação, origem, vida anterior.
Esse mix racial também se reflete na corporação? Isso ajuda na abordagem?
Cardonne — Sim, absolutamente. Nosso departamento de polícia conta não apenas com um mix racial, mas também agentes LGBT, com diferentes preferências sexuais: lésbicas, gays e outras. Não discriminamos. São meus irmãos, parceiros, agentes da lei. Trabalhamos lado a lado, porque temos uma missão a cumprir. Nosso departamento é grande, não interessa, não discriminamos.
Nosso departamento de polícia conta não apenas com um mix racial, mas também agentes LGBT, com diferentes preferências sexuais.
PIERRE CARDONNE
Policial americano
Quantos agentes vocês têm hoje em Miami?
Cardonne — Atualmente, 1.247 policiais.
E a relação com outras agências, como é? Como integram o sistema de segurança?
Latrice — Temos seções especializadas dentro do departamento. E nos juntamos com outras agências como DEA (Drug Enforcement Administration, antidrogas), ATF (Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives, Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos) e FBI (Federal Bureau of Investigation, polícia federal americana). E temos policiais que fazem essa conexão com os diferentes departamentos. Eles fazem a interação entre o departamento de polícia e os diferentes departamentos.
Cardonne — É uma operação coordenada em níveis federal e estadual. Trabalhamos juntos diante do fato a que estamos enfrentando.
O Rio enfrenta intervenção das Forças Armadas na segurança pública. O que vocês acham disso?
Cardonne — Falando sobre o Rio, e estive lá nas férias, as favelas fazem parte da infraestrutura. Talvez seja necessário aqui. Nos EUA, tentamos que não seja necessário ter militares ou a Guarda Nacional atuando como forças da lei. Isso soa como ditadura. Como lei marcial. E você nunca quer que as pessoas se sintam pressionadas.
Exceções são em situações como os atentados de 11 de setembro de 2001 ou em caso de furacões, terremotos, situações de tragédia?
Cardonne — Usamos a Guarda Nacional nesses casos. Eles dão assistência, vêm e dão apoio, provêm segurança, por exemplo, quando não há energia elétrica. Então, a função deles é diferente. Não necessariamente fazer cumprir a lei.
Voltando à questão do preconceito. Muitas vezes, a abordagem policial no Brasil parece diferente em bairros pobres e regiões de alto poder aquisitivo. Vocês têm em Miami comunidades de diferentes classes sociais. Acontecem esse problema também?
Cardonne — Uma das coisas que temos focado em nosso departamento é desescalada (de um conflito). É algo que treinamos nossos agentes enfaticamente. E o que é isso? É saber como subir a força ou minimizar a força, independentemente do status social. Costumamos chamar de judô verbal (técnica de abordagem criada por um policial americano, baseada em tentar acalmar a situação usando palavras) para desarmar a situação. Isso elimina a questão de sua classe social, porque você pode ser da vizinhança pobre, mas é capaz de neutralizar a situação e poder resolver (a questão) pacificamente. Por outro lado, nas vizinhanças ricas diante de uma pessoa extremamente violenta, você é capaz de neutralizar aquela força.