Mesmo escrito há pouco mais de um ano, o texto que Fidel Castro assina no prefácio da biografia de Frei Betto permaneceu guardado até esta segunda-feira, quando o livro será lançado no Rio de Janeiro. Ironicamente, a obra do historiador Américo Freire e da jornalista Evanize Sydow chega às livrarias três dias depois da morte do ex-presidente, amigo, seu "irmão mais velho" nas palavras de Frei Betto, provavelmente o brasileiro mais próximo de Fidel.
É um dos últimos textos assinados pelo comandante, que, desde que passou o poder ao irmão, em 2008, aparecia raras vezes e se manifestava _ mais raramente ainda _ por meio de cartas no Granma, o jornal oficial do Partido Comunista cubano. A maior parte do texto, que ocupa quatro das 448 páginas do livro Frei Betto - Biografia, é recheada de memórias de uma amizade de 35 anos, iniciada em 19 de julho de 1980, em Manágua, capital da Nicarágua, por ocasião do primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Frei Betto é descrito por Fidel como "uma pessoa de vasta cultura, amplos conhecimentos e profundas convicções". Daquele encontro ficou a imagem de uma religioso "radiante e feliz com a revolução em pleno coração da América Central".
Nas entrelinhas do prefácio, fica clara a saudade de Fidel quando recorda a série de 10 reuniões com Frei Betto, entre 13 e 29 de maio de 1985, para o livro Fidel e a religião, escrito pelo brasileiro e best-seller em Cuba. Aquelas reuniões, nas quais ambos estabeleceram intersecções entre "ser marxista e cristão", marcaram o então presidente, que costumava dizer: "Se alguém pode fazer de mim um cristão, é Frei Betto".
Poucas vezes se vê Fidel tão humilde, capaz de se colocar quase como um aluno diante de um amigo: ele conta, por exemplo que foi de Frei Betto que ouviu a teoria do Big Bang sobre a origem do universo e admite ter sentido vergonha quando ambos conversaram sobre "a evolução da matéria":
"Eu me sentia envergonhado de minha ignorância, pois não estudara o tema profundamente".
Ciência, geografia, história, economia e política servem de pano de fundo para Fidel fazer uma viagem no tempo. O comandante volta aos anos do ensino fundamental no Colégio Dolores, em Santiago de Cuba, e lembra como fora um titubeante estudante de Direito, que demorara para consumir as mil páginas de Economia Política, descobrira-se nas Ciências Sociais e comprara seu primeiro "O Capital", de Karl Marx, em Harvard, em 1959. Em inglês...
O texto foi assinado como tendo sido escrito às 13h15min de 12 de outubro de 2015, mesmo dia em que Frei Betto recebeu o título de doutor honoris causa em Filosofia na aula magna da Universidade de Havana. "Quando Frei Betto retornar a Cuba terá que estar bem preparado para debater com o seu ignorante amigo", afirma.
Não há, no texto, nenhuma intenção de ser um testamento. Tampouco há análises geopolíticas, ainda que Fidel arrisque, em um parágrafo, perto do final, uma leitura, um tanto profética, sobre as tensões entre a Rússia, de Vladimir Putin, e o Ocidente:
"Nos últimos cem anos, duas poderosas potências, a URSS e a República Popular da China, partiram das ideias marxistas-leninistas na busca de liberdade e justiça social pela única via possível: a revolução social. Ambas adquiriram, com o passar dos anos, poder suficiente para enfrentar o poderoso império baseado na opressão e no saque. Só um espírito realmente aventureiro e irresponsável pode levar os Estados Unidos a uma guerra com qualquer uma delas, independentemente do que ocorreu com o Estado socialista multinacional da URSS na última década do século XX".
Ficha técnica
Título: Frei Betto - Biografia
Autores: Américo Freire e Evanize Sydow
Editora: Civilização Brasileira/Grupo Record
Páginas: 472
Preço sugerido: R$ 54,90