Crônica publicada em 6/04/2000
O locutor anunciou, em cima do trio elétrico, em que já estavam o conjunto Tchê Barbaridade e outros apresentadores, que ia entrar no palco a grande atração da noite: Senhoras e senhores de Encantado, para gáudio da nossa gente e orgulho da nossa terra (e aí me surpreendeu, porque repetiu Pôncio Pilatos ao apresentar Jesus ao Sinédrio para ser julgado), para nossa alegria, Ecce homo, Pablo Sant’Ana, temido pelos homens e amado pelas mulheres. E Pablo, tão pronto entrou no palco, já fez o povo cantar.
Fora a megalomania, só queria pedir a todos que me cercam, ou que por qualquer motivo me toquem ou sejam tocados por mim, que nunca me tirem nem molestem as coisas que nasceram comigo e as coisas que vão morrer comigo. Entre as coisas que nasceram comigo e as que vão morrer comigo interceptou-se a vida, maravilhosa ou terrível, que não conseguiu mudar as coisas que nasceram comigo, como a ternura, a compaixão, por exemplo – mas a mesma vida no entanto inculcou-me coisas que vão morrer comigo, boas e más coisas, como o encanto de cultivar amigos e o medo de perdê-los, a incerteza, a esperança, a fé e a desilusão, por exemplo ainda, a indiferença à morte quando jovem, a certeza dela agora já nos dias que correm.
Mas como os meus leitores imploram para que não fale mais em morte, quero então lhes falar na vida, correndo estuante nas ruas ensolaradas que me esperam, eterna no sorriso da criança que me abraça e do velho que insiste em nadar para a frente quando a corrente tenta fazê-lo afundar pelo desânimo.
Entre as coisas que nasceram comigo, por exemplo, está o vezo sublime de sempre colocar-me no lugar de quem errou e imaginar e examinar as suas prováveis justificativas. Entre as coisas que vão morrer comigo, por exemplo, está a humildade de reconhecer que de repente a vida pode me encurralar a proceder da forma mais nefanda que tenho condenado nos outros. Entre as coisas que nasceram comigo está o respeito às razões do acusado, mesmo que todas as evidências o inculpem. Entre as coisas que vão morrer comigo está o tremendo e estupendo remorso de não ter ajudado muitos próximos e distantes seres que visivelmente precisavam da minha a ajuda, que eu tinha para dar, mas não lhes acudi. Por desleixo ou covardia.
Nasceu comigo a coragem, mas me massacra que muitas vezes desonrei-a. Em compensação, vai morrer comigo o orgulho de muitas vezes ter sido mais corajoso do que podia conter a minha potencialidade genética. E vai morrer comigo a jactância de que muitas vezes arrisquei a própria coragem e com ela toda aminha honra numa parada só, em defesa do que eu considerava justo, quando todos imprecavam pela outra direção.
Fui covarde e fui corajoso, destemido e medroso, por isso me orgulho e me envergonho, mas se minha trajetória foi assim marcada por sombras e por luzes, então é porque vivi.
Se chorei e se sorri, se sofri até a depressão e fui feliz e realizado até a euforia, se muitas vezes quase desisti mas consegui dar a volta por cima e ficar embriagado de entusiasmo, então é porque vivi.
E só vivi porque fui arremessado, mal ou bem, pelas coisas que nasceram em mim e aplacado pelas coisas más e boas que vão morrer comigo.
Por isso, Senhor, peço-vos perdão, embora não percais de vista em vosso julgamento de que desconfio de que sou digno de ser acolhido em vossa morada, ao lado dos meus amigos, de todos que admirei ou de quem em algum instante provoquei alguma admiração.
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